O pão da Neli

Eu que não sei dimensionar o tempo, vivo relendo memórias de comida, de gente cozinhando, de  lugares descobertos pelo paladar, de doces que de repente surgem, não se sabe de onde ou quando. 

Hoje enquanto caminhava por uma manhã nublada, recordei tanta gente que com simplicidade e carinho me recebe com comida, gente que conta história e refaz o modo. Entre as boas histórias está o pão da Neli. 

Quando a conheci uma das primeiras coisas que ela falou foi “mas o que é que essa guria vai comer?”. Era um dia frio em que tomávamos chimarrão no meio de uma casa em obras. Já na primeira conversa o assunto foi comida e o modo como eu me alimentava.

Acho que, de pouco em pouco, ela foi notando que não havia nada de complicado em não comer animais. Adaptou algumas receitas e errou em outras. 

Eu com ela comi cuscuz pela primeira vez, vi como se usa a tal panela de cuscuz, aprendi a usar os talos do espinafre no feijão e comi muito – muito – pão. Entre as boas memórias, nas minhas papilas está o gosto do pão que a Neli faz. 

Desde que parei de consumir animais o pão se tornou uma novela. Já que no sul do Brasil é muito comum o uso gordura animal, leite e até mesmo ovo na preparação do pão. Então para fugir disso eu aprendi a fazer ou comia quando alguém como minha mãe ou a Neli faziam.  

Eu não lembro direito quando foi que ela tomou gosto por fazer em casa, passando a comprar com menor frequência o famoso cacetinho.

O pão caseiro se tornou mais frequente mas nunca era o mesmo. Às vezes mudava a farinha, noutras misturava batata doce ou mandioca, às vezes deixava um pouco mais doce ou adicionava sementes ou polvilhava canela – sugestão minha. Certa vez misturamos a habilidade dela com a minha vontade de inventar e fizemos pãezinhos doces com vários recheios: geleia de uva, melado, amendoim…

A Neli fazia pão para esperar quem chegava de viagem… 

Dizem que cada um tem mão para alguma coisa. Certamente a Neli tem mão para fazer pão. E o pão que ela faz é só dela. Você até tenta mas não fica do mesmo jeito. 

Hoje enquanto caminhava – escrevo bastante enquanto caminho – atravessei o oceano, sentei num cantinho da mesa redonda e ali fiquei observando o girar compassado de mãos que enrolavam facilmente a massa lisinha e macia de um pão com tempo de descanso na bacia vermelha enquanto o forno era aquecido.

Nada além de farinha, óleo, sal, açúcar, fermento e água. Ingredientes medidos a olho, no tato de quem domina a arte do pão.

Quando sai do forno é difícil esperar até que esfrie. E com a mesma maestria com que a Neli faz o pão ela também tira da forma, estufando o peito, orgulhosa de sua obra. 

Então se faz café e a reunião é na bancada, ao redor do pão perfumado e fofinho que provamos.

“O que essa guria vai comer?”

Pão.

Recém feito por mãos com habilidade para fazer e tirar da forma e depois cortar fatias e voltar a cortar.

Pão com cheiro de memória, capaz de alimentar na lembrança, no jeito de reinventar o que se come ou simplesmente valorizar o que sempre comemos.

Hoje a casa tem cheiro de pão.

Até a próxima história.

17.08.20