Casa na árvore, girassóis nas mãos…

Quando abrir os portões: aprender a costurar, casar vestindo azul, pintar um quarto, pendurar os quadros, as paredes, as cadeiras. Pintar as linhas, as entrelinhas, pintar as fissuras, a reinvenção das cores dos olhos, o leito das letras e as curvas do mar.

Quando abrir o portão: preparar café, contar as colheradas, sentir na boca o gosto de quem chega, ter no beijo o gole do café passado… Amar talvez como resquício do passado, mas sem formas verbais. Amar o intransitado...

Quando o portão abrir: bater na porta do vizinho, deixar um bilhete na esquina, chamar para dançar, dançar até descansar os pés. E musicar o pontilhado dos quarteirões, a ponte na chuva, a chuva nos pés, musicar as sacadas e a invenção de arco-íris feito com água de mangueira estendida ao sol, musicar o calor que chega, os pandas que voltaram a gerar, musicar o feito de todo lugar...

Quando o portão abrir: vestir os tecidos que aprendi a bordar, costurar as histórias que se contaram em mim. Abrir as janelas nas aquarelas que misturei com água e pincel. Pendurá-las nas paredes do quarto de berço, o desenho das esperas…

Quando o portão abrir tirar as luvas e pousar as mãos na barriga abraçando… Abraçar a sutil vida feita com o silêncio dos tempos que foi crescendo mais forte que a in-lucidez do impossível… Nas mãos na barriga ter nas mãos um coração batendo nas letras batendo um coração batendo. 

…Um coração batendo, quando o portão abrir.

Quando o portão abrir… Os passarinhos me levando para atravessar a rua. Buscar seus rastros, seus registros de penas e bicar de ar, os lares feitos com palha e folhas secas, feitos na ponta do bico que empurrou comida na boca não sabida.

E a atravessar a calçada, nadar na encruzilhada, ouvir a semente germinar. E ali no logo, o outro lado da ponte a casa destelhada nas estrelas, as paredes feitas à mão e o repousar olhado no portão de madeira. A brincadeira desenhada com infância, os pés da montanha, o vento pintado com as ondas do mar. As mãos dadas…

É para não soltar...


Quando o portão abrir visto o azul límpido do céu e as flores nos pés…

Quando o portão abrir ergo a casa na árvore, de lá assoprar o pó dos livros e das xícaras minúsculas que esqueci na brincadeira, expandir o telescópio, costurar as estrelas, deixá-las balançar nas minhas noites de olhos abertos, do meu estar adormecido… Adormecida nas ondas do firmamento, a distância que tomo para voar… O impulso para rir contra o impossível, a gargalhada como balão… O impulso para voar...

Quando o portão abrir, vão estar nas mãos o trigo e o girassol... Mãos dadas e uma frase por ficar talvez apaziguada… Talvez para não interpretar. 

Quando o portão abrir, recorda o que resiste. O que resistiu ainda… O que resiste…

Quando o portão abrir levo a xícara de chá para as beiras da casa na árvore, na altura dos pássaros balanço as pernas o movimento das asas abertas. De lá é ver chegar…

Chega de espera, vem abraçar… Faça-me abraçar...

Não há degraus para pesar...

A chuva cai e com a água da chuva os braços vão se grudar, o corpo molhado deixando-se irrigar. E cada pingo que cai é um passo que o coração faz, o pulso, a vida.  

Cada gota que sinto se arrastando em mim, misturando a pele, suportando a sede, arrepiando. Não existe mais nada, os céus estão claros, a chuva cai, o barulho da chuva vestido com chuva. O campo estendido sem as métricas da tesoura, o vasto balanço verde cantando, acompanhando a maestria da chuva… Os pássaros se recolhendo sob as folhas, por entre os galhos. Esperam… Que a chuva dite tudo o que tem para ditar… Os pássaros nas árvores esperam a chuva para voltar a gritar seus bicos, esperam o tempo de um abraço durar. Um instante dura até nunca mais…

Quando o portão abrir vou estar ali, descosturando paredes, alinhavando as histórias que querem me contar.

A noite é clara e a lua não se vê…

Quando o portão abrir continuarei nos pássaros…


30.03.2020
07.04.2020