Chovi…

Chovi
Pétala
Folha
que voa
e nada
e some...

Chovi 
pó,
na mão
deslizou a pedra gelada
ilusão do algodão
grão no prato,
no asfalto, 
na contramão
mãos.

Chovi
Sem hora sem dia
Morta viva
Escrevi.
Chovi.

Chovi sobre o guarda-chuva.
Fechei o tempo e carreguei-me nuvem escura. Cada nuvem que estacou no céu espaço aqui agora. Amassei as cores num canto ângulo, grau… Montei tabuleiro céu frio e então caí…

Pingos grossos, densos, profundos, fundos que correram sem dimensão do destino traçado ao nível da estrada reta. Não eram pedras de gelo, eram goles descidos na garganta desviada do céu, do além, do antes, o inexplicado. Eu caí chuva no asfalto, no capô do carro, no rastro de uma lente de vidro, óculos em passos da esquina do bar café, mercado fechado.

Caí,
Nos guarda-chuvas abertos cantando… O tempo de gota eu, cantante nos guarda-chuvas dispersos em meados de mês. Esperas, idas, voltas, abrir, fechar. Ver…

Enxergar os olhos aos céus e gotas eu gota caindo do fundo cinza, quase azul, cinza nebuloso. Silêncio… E as montanhas em neve que desaparecem.

E o nebuloso céu de onde a gota vem reta, leve, indiferente do mundo que espera sol. Cai e vê… Cai e vê a finitude da física, da matéria, do sangue quente, da pele fria. Eu gota imagem passada, país outro, tarde outra, é só qualquer lugar, lugar. Eu olhos parados, céu por onde vem a gota que desce reta, lenta, direta. Meu rosto banhado, suado, inexistente… Gota eu.

Sertão que não vi.

Outra vez… Primeira vez em que guarda-chuvas escutavam-me caindo. Vim sem pressa, indiferente a vida pontual do relógio que contava batidas no pulso. Enquanto corria lenta guardava a respiração das asas que contrárias a mim buscavam o céu. Distraídas dos tons em cinza azul... Tempo de vida. Corro agora no telhado, nas telhas mesmas dos antigos moradores partidos.

Segui,
Caindo,
Escorregando nos guarda-chuvas de cores, formas, lugares, curvas de árvores, raízes e peles. Sobrando fina, caindo impercebida da falta de forma e peso da gota eu. Sem barulho mergulhei. Um tempo só de canção piano, pingos lançados em terras sonantes brancas negras. Sete tons, sete tempos, sete gotas…

E eu molhada no silêncio, impermeável pena… E a pena que a chuva chorava, arrancada da pele viva, molhada… E a pena que carreguei fugida do corpo. Pássaro, canário preso, exausto, pardal solto, arredado a migalhas. Carreguei junto, fui ao tempo de ainda dançar no vácuo esfera sem vento. Querendo ser pássaro, chovi desviada das grades gaiola, janela, porta trancada. Eu gota desviei a réstia fresta da porta, da distância, do oceano. Das lentes dos óculos. (Eu e você [?]). Eu gota transparente, invisível, sem foco na lente fotográfica. Inexistente, uma gota pingo que chovi.

Não é castigo...

Chovi como lágrima. Era rosto quente, palavra errada - não exatamente. Rareava-se o porquê, o choro correndo em si. A gota salgada e o gosto da ponta da língua que senti. E se eu cair no mar? Em qual pergunta estancarei a sede?

Eu chovi. Era silêncio - como se falasse do tempo que não era quente, não mais. Chovi indiferente a mundos que morrem de sede. A terras mórbidas e chãos roubados, levados a outros continentes. A proliferação de folhas verdes e uma tarde dormente.

Chovi sem esperar que o guarda-chuva se abrisse colorido a mim. Eu cai, chuva... Era simples como uma palavra única - e singular me fizesse existir. Chovi ao princípio da estação, na porta de entrada, nos trilhos do trem, na estação veloz e abafada. No duplo sentido. Sentido duplo...

Chovi das nuvens que desenhei com a água do canal refluxo. Na contramão da previsão do tempo, contra a possibilidade, contra o sol. Nas ruas cruzadas, desenhadas em réstias anseios de astro quente, protagonista… Eu vou chover até o fim… E outra vez…

Eu acho que sim…

Vou chover em cada reticência…
Em toda reticência insegura, incerta, indefinida. Eu gota.

Exageradamente gota reticente. Reticências infinitas propagandas escondidas na calçada, na folha caída, na folha ainda verde, na vidraça, no carro, no copo, no rosto molhado que alcanço enquanto gota. Eu chovi. Gota. Pingo. Gole. Eu gota.

Eu chovi. Não foi sem sol, sem raios. Eu chovo verbo. Impronunciável forma de pingo invisível, inibido escondido (inexistente como gota colocada entre parênteses). Caio, distraída em mim, desconhecida do sol (in)verso nas cores do arco reinventado em linhas isoladas, presas umas nas outras. Eu gota  incomunicável a forma dura precisa de chuva e sol. Reticências e todo o infinito (in)encontrado.

Chovi, era domingo, era já a noite, não há guarda-chuvas por esperar. Não há tempo para conjugar a exatidão do tempo…

Eu gota chovi nos passos lentos, no atraso na travessia, percurso, na incompatível paciência de alguém ninguém demorado a rua. Guarda-chuva fechado. E eu caindo escorri da cabeça ao ombro, levando junto um gosto úmido de sal pintado na pele, salpicado no rosto gelado da esquina. Domingo, já noite. 

Era tudo para sempre.

Eu chovi num domingo - que não fosse domingo, que fosse dia. Que não fosse dia, hora. Só o tempo rompido ao tempo. Um pulso, um pulso, um pulso. No pulso, no telefone.
Telefone?
Só o pulso. 

Movido em si, reticências e uma gota em si, caindo na terra de um jeito doce. Uma nota no guarda-chuva, um olá na folha amarela, um sinal pintado na lente, uma gota indiferente na pena que não se molha, no bico que canta e sente... A imprecisão do tempo, a (in)condição do sujeito que se molhou. Uma gota sem verbo que continua caindo.

Domingo de manhã.


14/10/2019