Do binário errado

O mundo caia na cabeça se desfazendo.

Olhou para o céu sorrindo.

Sorria enquanto o mundo caia na cabeça.

Na janela, sinais do vento.

Quando o trem moveu os trilhos um grão de pó ficou para trás. O café esfriou na cafeteira sem que alguém bebesse o último gole morno. Um pássaro morreu na calçada, um garoto, um garoto… Um garoto fingiu não ver na calçada um cão latindo. Um sujeito definido definitivo não reparou que diante dos olhos eram ‘meus’ os que estavam… Ninguém esperou por nada. Eram quase meus. Era quase a minha cor.

As portas da biblioteca não foram abertas.

Era segunda-feira.

Quarta-feira. O mundo caia na cabeça. Os ombros doloridos.

Ergueu a cabeça, perdeu a conta dos pés, deixou-se ficar nas nuvens. No topo telhado de corvos que sabem das janelas de outros animais.

Perdeu as horas na ponta de folhas que caiam invertendo a dinâmica reinante do ar, do que põe dentro para respirar.

O mundo caiu sobre a cabeça. Sorriu para o alto.

Os ouvidos cheios de ruídos, o barulho em plurais anunciava a chuva no altar.

Um teto caiu na cabeça.

Abriu o mundo, agarrou a taça, puxou a rolha, a orelha. O corpo por girar. O copo a se despedaçar…

Girar…

Quando o trem moveu pedras e ferros eram olhos que se perdiam no depois, pensiero encurralado num descampado sem gravidade, sem asas ao ar. Vidros fechados, portas fechadas, anúncios de estações abandonadas, cidades abandonadas, vidas passadas… Percursos seguintes (in)direcionáveis, o fim de um roteiro previsível, escrito e quase. (é sempre um quase). O nome dado sem a direção do depois…

Quando o trem balançou camisas, o concreto das beiradas inventou os mares e os lagos azuis como só ali poderiam ser.  Os copos sem poemas, os corpos azuis. E as semanas que boiaram sem encontrar margens onde aceitassem parar. Estão no agora movendo-se sobre carros como uma brincadeira de dizer e não dizer. De esquecer o impossivelmente óbvio. E esquecer a lei do esquecimento…

E aprender com a criança a escrever na boca a pronúncia, o acento. O riso de outro idioma. O não dizer e rir para não dizer.

O mundo que caiu naquela manhã sobre a cabeça, quase doeu. Singular instante eterno. No mesmo agora o depois. Do riso pintado na boca de outra cor. Era letra, tinha gosto, como… como…

Eram as ruas que esperavam que voltasse a andar. 

O vagão partiu. Vazio.

No palco, luzes dançavam em amarelo e branco, nada mais, nada por nascer. Páginas de Sartre que jamais pudessem existir. A confusão escolhida de tempos verbais. Ser… e nada na ‘minha’ náusea sem filho, naquele instante. Só…  No instante sem vírgula em que a voz se segura nas cordas carregadas na garganta, na língua, no idioma.

O mundo vestido caiu no depois.

Nu. Devastado. Despido. Apagado. Queimado.

Só… 

Não houve pó nem pé ou luz que percebesse quando passou por si, ‘em mim’. Era fria a noite que não chegou. Olhar, ver, reparar, nada.

Não estava. Estava.

Invisivelmente não vista fora de si.

Não estava. Estava. ‘Estou’.

Um gato miou na calçada de estradas só imaginadas. O vento miava das esquinas de cabras e árvores aquareladas.

Uma lâmpada apagada na luz. A cor de um olhar quase alcançado. Quase. Quase alguém percebe o quase… O parque e a espera de um fio de trecho perdido, um corredor entre pratos e talheres. A forma submersa na página de carimbos e taças. Letra maiúscula.

Destruíram os degraus da biblioteca, fecharam as janelas, colaram os livros no fundo nas estantes, esconderam os mapas. Uma tarde que nunca existiu.

O trem partiu no horário.

Do binário errado.

Quando fechou os olhos a cor que viu não era a mesma encarada antes. 

Quando abriu os olhos estava cega. Só os dedos sabiam por onde ir.

Ao desejar o impossível, veio. Eram as frestas do portão.

No anseio pelo desconhecido foi tomada em braços de abraço trincado. Inexistente estreito do horizonte que não mais…

Nada existe.

Filosofia de fazer chorar.

Ao rezar por liberdade não esperou. Escancarou janela, pôs a ninar os males do medo. A luz da sala acesa. Solidão, amarras, cordas, caixas e rótulos e nada mais. E todo aquele o que mais…

As luzes jogaram-se aos ares da noite. A estação mudou, não havia indício de lados. Os olhos pintados de preto, os lábios sem cor. Os óculos tortos, as lentes fracas. Não procurou por nada ao redor, nem estradas, nem faces, rostos, caras que procurassem… Qualquer coisa.

Dançou.

No meio do mundo estava só.

Dançou.

Dançou porque no meio do mundo só havia um lugar para estar. Só.

No meio sol da tarde (só) dá para continuar. Pés tortos, olhos perdidos. Os trilhos, as mãos inquietas de música numa garrafa de água vazia, num banco de espera às margens do mar do trem. No sol que vem no meio da rua quando os carros também vem, quando a chuva vem e o banho na calçada fica para o mês que vem… Que vem… Quando vem o silêncio fazendo nó no cabelo, coçando a orelha, tatuando páginas (in)escritas, aquietando os mundos que (não) se ergueram nos boletos pagos nem nas batidas de mãos apertadas demais… De hoje o impossível é não estar só. De hoje é impossível não estar só se o mundo insistir no tapa, nas latas, nos prazos postergados na barriga.

Ainda dá para lembrar de queimar o número do mundo, olhar para trás, fazer a curva, pular dos trilhos para o teto. Dançar no topo do trem, no topo dos céus, de nuvem em nuvem. Mal me quer e tudo bem…

Quando doer a notícia que chega junto de mundos infames e julgamentos desleais, ainda vai dar para lembrar que hoje será para contemplar a janela do outro lado da biblioteca onde as folhas são vermelhas, onde o sol alcança a mesa, onde as mãos se esquentam. Será para viver um pouco mais.

Na prescrição: tomar em meio litro a coragem do invisível.

Será só, como deve ser só…

O trem chegou.

Partindo.

O binário errado.

(19.09.2019)