Quando as luzes se apagaram

Quando as últimas luzes foram apagadas o que sobrou no prato foi um resto de domingo, uma bola de arroz duro no estômago, livros não lidos… Um silêncio quase vazio, embrionário e forte que respirava lento, lento…

Ao fim, quando o quarto foi deixado no escuro, um rosto borrado se escondeu no travesseiro, no calor de um cobertor florido, lugar ainda mais escuro. A escuridão dentro da escuridão… A escuridão da escuridão de dentro esperava pelo impossível, era o quase antes do trem partir. A quase certeza do tempo mudado, o verbo para quando o trem deixasse a estação… Era semana ainda, corriam… Corriam os dias.

Intocável, (in)concreto, um segundo no corredor da cozinha. O mundo desviado na esquina, não poderia ser tudo o que só pode ser na cabeça que inventou um meio poema no escuro do travesseiro abandonado num quarto fechado depois da quinta-feira.

Era domingo, o trem partido em linhas dobradas, desvios, caminhos. O carro que correu. O dia se desfazendo na névoa cruzada de fronteiras sem margens, túneis para pontos de luzes amarelas e a velocidade borrada no rabo do olho. Um senso diverso que durou a meia hora de um domingo no retorno da fronteira.

O retorno da fronteira.

O depois…

Antes que as luzes do dia se apagassem, a árvore do meio estava abraçada. Enrolou os braços ali, no jardim das tartarugas, nas pernas dos pernilongos. Com a árvore nos braços recaiu sobre o peito uma quase solidão – era domingo – uma palavra ainda sem nome, sem forma, sem jeito para ser ou para dizer. Nas ruas o silêncio de casas de avós sem netos, de casamentos sem amor, (im)pressões… Indecisões com títulos de donos. Tarjas interpostas em refeições, sono induzido até o fim… 

Até o fim…

Até o fim do dia, o fim de semana, o fim do mês, as férias… O resto de um resto sem deserto, sem sol, sem rosto, sem nada. Uma vida sem nada. De nada.

Do peito figurado para desconsolo, as explicações da linguística intransitável (que peito é este arquivo abarrotado?). O vazio palpável no invisível de um silêncio tocável profundo cabível no impraticável. A confusão entendida em toda frase melhorável deixada pela metade de uma frase que deve ser. O deslugar onde palavras cabem, onde letras completam os cantos. O idioma não importa, são páginas a serem.… Páginas para ser…

Quando o peito pesou num tronco de árvore, abraçou as voltas de braços de pele seca manchada de sol. Havia um silêncio pleno de rasuras que só poderiam se aconchegar num abraço de árvore abandonada no meio do jardim, impercebida pelas tartarugas e pinhas caídas para o natal.

Era quase um dia quase… Um dia para quase lembrar da criança sentada na beira da escada olhando um horizonte feito no singular desenho de cadeiras e cães.

Uma criança cresce e não alcança os pés no chão. Dançam os pés no ar. Para frente e para trás. Vão e voltam como o balanço da praça de pedra, da praça de sonhos da criança deseducada. Mais alto, mais alto, mais alto até a imprevisão do ar. O tronco, a ponta do pé nos galhos e uma folha que balança para fora. Para depois. Para sempre o que ninguém conhece do depois do próximo instante, do próximo milésimo de segundo do agora.

No ar, uma criança de cabelo branco dança como um balanço. Madeira e ferro, tinta verde, vermelha. Um balanço dança vazio no vento, pra frente e para trás. Uma árvore balança abraçada nos braços de quem balança incerta certa, se balança na fé de um sei lá… 

Quando as luzes se apagaram, quando o dia se apagou aos poucos, quando o quando ditou o desfecho, no escuro do travesseiro deitou as linhas de um meio poema escrito das linhas do trem que ainda não passou.

15.09.2019