10 anos e uma morte

Já não tenho sono, na madruga desperto. Uma frase solta se agarra a mim num pedido de que dela eu diga. Egoísta que só sabe ser.

Eu me preparo como rei em frente ao espelho de ouro para frases em pedaços de anos. O dia exato em que lhe escrevo. Precisei de 10 anos para dizer da morte prematura que chegou sem respeito aos meus recém feitos 17 anos.

E o que de tudo eu poderia dizer, deveria dizer, merecia dizer, quero fazer sem ranhuras, mágoas ou tentativa de ferir meus pulsos. Quero dizer desdizendo, sem amargo gosto de nada na boca, sem lamentosos impulsos ou dramas novelescos, sem depressões de remédios, sem inquietações do que a vida teria feito por mim se aquele sábado corresse provável ao cotidiano.

Plena serenidade da manhã de sol o registro que datilografo em cela sem grade. Corro dedos de silêncio: Eles estavam enganados. Eles. Estavam todos eles enganados ao professar o falso futuro: Logo esquece, vida que segue.

Logo… Logo esquece… Logo são todos os outros de todos os tantos dias que vem e vieram. Logo, tantos deles agora se engasgam. Minha garganta. Passaram-se 10 anos e logo a vida seguiu.

Estavam todos enganados ao dizer que haveria de esquecer aquilo que fez de mim outra por todos os outros dias de 10 anos que correram às margens do rio.

Interrogo a afirmação contra parede sem vingança aparente, sem dores latentes. Mas no mas sem mas, de fato as marcas — e digo marcas porque falar em cicatriz seria infamar os desenhos feitos — continuam acesas como luzes de um dia, a manhã de sábado quente. Eu sou a dor que curei em noites silenciosamente solitárias, quando debruçada à tarefa de recortar a voz pousada em meus ouvidos de memória. É de memória que reconstituo os olhos imateriais que pousavam no meu sono. Meia noites em inícios da semanas de glórias.

Dedico minha palavra, há de saber desde aquele tão próximo início de década.

10 anos se passaram. E eu não me importo com aqueles de discursos aos quais me arremessaram sem respeito.

10 anos. Restou eu e restou você ainda jovem, ainda em bermuda xadrez e camisa de time. Ainda ficou firme a certeza do que somos agora.

10 anos correram e eu ainda não entendo, lenta que sou, como pode ser 10 anos o tempo tão recente, tão presente. Tão proeminente constante para mil vezes 10 anos que virão. Dali e adiante.

Sem revirar memórias — vou fazê-lo em segredo quando o texto ser ponto em ponto de fim sem fim — há anos celebro em silêncio datas: nascimento e morte. Já não é sempre que choro, já não é sempre que lembram que eu também existi. Já são tênues as cores que me vestiram aos pedaços. Sozinha passei a me pôr em vestes. E por agora não choro o pranto. 10 anos ou uma década. Um marco de tempo. A morte que não morre. A vida diluída confundida ao ar.

10 anos passaram como aros de bicicleta entre as corredores cortando o trigo. Eu aqui, sobrevivi. Viva, ando destecendo a tela pintada por quem não conhece meu desenho do mundo. Daqui eu sigo, como um vento que leva as formas já desfeitas. De mundo. Eu ando, ando e ando sem rasgar as velhas máximas perguntas postas em senso. Eu ando sabendo que depois de tantos anos o tempo de qualquer coisa ainda me reconhece.

Temporalidade: quem define?

Por hora de segundos escuto o silêncio sem fala. Uma palavra sem parada. Leve sensação de tempo parado: O que restou sem ser sobra, o que ficou (im)permanente no permanente é o que verdadeiramente fui no exato momento. Cravado de pedra. O instante pedra inalterado no que se altera logo depois de ser infinitivo.

Tocamos o infinito: instante preciso. O tempo do risco da luz não ser luz… Anos… Depois se apagou…

Precisei fazer empréstimo ao tempo, 10 anos de conta sem dívidas. 10 anos para conhecer a graça dos momentos que fomos, um diante do outro. O melhor que poderíamos ser e fomos.

Te amo, sem dizer que gosto da palavra amor. Já não gosto. Mas hoje, em olhos triste que possuo como constituição pura do que sou e sem lastimável a forma visual, também sou eu esse momento regido na face transbordada ao espelho. Esse pedaço do tempo esparramando há já 10 anos, um retorno em vestes de palavras que me ensinaram a escrever.

Foram 10 anos necessário para escrever, ainda prematura, meu medo perdido da morte. Uma década para o reconhecimento, 10 anos que se multiplicam ao que vem. Sem lamento, sem drogas ou pranto recolhido. Há 10 anos tenho a ideia da imprecisão do tempo: 10 dias, 10 horas, 10 segundos, 10 mil anos, 10 semanas.

Uma década foi o fim da tarde de ontem. Eu sei. E me repito. E até mesmo para a morte uma década precisa ser celebrada.

Na relatividade não científica do tempo o que contou o registro foram as frações dele — momento — onde fui e fomos o melhor que dava pra ser. O melhor que poderia ser.

Um acúmulo de momentos vividos indiferentes ao desconhecido futuro, animais que somos. O momento no plural. O momento que nos levou ao infinito.

Dizem que ser notado é existir. E eu não quero ser notada… Visito cada instante que tantas décadas não apagam.

Você existe, eu noto…

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