Se eu tentar escrever agora…

Se eu tentar agora escrever num lampejo contrário a conotação interior de uma sensação suspiro que se entoa sob as vestes que me vestem ecoando o eco de que talvez não seja ainda o tempo... De que ainda é instante de repousar a cabeça, voltar aos poucos, sorrateiramente, como as patas de um gato que se prepara… Ainda é tempo de deixar que as réstias escritas venham, pouco a pouco e que tampouco de repente ou lentamente - pian piano - me revistam e me vistam de ar e sopro e vento quando então plena de canto, penas e topos eu em mim retome...

Mas se eu tentar… Escrever… Agora… Eu deixaria na marca da tinta que pincela a estrada o início de uma história que chegou ao fim… “E eis que numa linda manhã de sol, nos princípios de uma primavera, sobre os trilhos quentes do caminho de retorno, eu ajeitei minhas pernas entre a dureza de uma caixa que durante meses, durante meses pesou-me nas dobras de um caixa que em mim nunca - nunca - encaixei. No caminho contrário, tão rapidamente carregando o peso além da caixa, o peso dos meses em que as palavras empilharam-se angustiosas e apertadas numa caixa que nunca couberam… Ainda assim carreguei-a com cuidado e protegendo-a até estar entregue as mãos a quem pertencem. Das minhas se soltam, após uma rubrica tremida. E voltam, minhas mãos, a pulular nos ares de um não sei e não preciso saber…”

As frases pela metade, as histórias ao contrário, desfechos que não se fecham e talvez nem mesmo se abrem, como a face do portão onde estive trancada e o jardim do algum momento isso iria acontecer. Lampejos, lamparinas, luz da vela na mesa entre taças de vinho, reflexos nas pedras feitas em paredes. E se ainda assim, contrariando cócegas de um tempo gasto que tem dores de corpos e noites de sono sem sono...

Mas se ainda assim eu tentar escrever… Sobre as frestas nas quais tentei molhar o pincel, ou terminar a página lendo, ou chegar ao fim da frase escrita mal, ou atentar à poça de água na fotografia e o livro outro que me veio a mente nas últimas páginas do livro que li chegando ao fim, ou se salpicar-me conto na comida arte que me anseia escrever como experiência de afeto e andança de mundo que se revela aventura em outros mundo, um leque de giro infinito... Talvez, então, eu dance entre passos de palavras que no meu primeiro ato sem caixa me entregou em outra língua àquele canto de livros, desta cidade que (também) não me encaixa. Mas mesmo assim, ali, num canto remoto da cidade, fui descoberta num bilhete que anunciava abrir as asas e o próximo pouso. Eu encontrada, um livro que me tomou nas mãos e me abriu para sonhos mais altos que os próprios sonhos. 

E se tentar escrever agora, entre goles de um café sem ruído nos ouvidos… E se eu tentar escrever sobre intenções anseios suspensos, mas que - poderia parecer, se não fosse o e se de uma tentativa - agora ainda não estão no tempo da forma de uma letra agarrada em outra letra… E se eu falar entre dentes de um conto nos olhos dela. E se eu tentar ler os risos por onde volto a demorar nas ruas onde rio a minha insignificância de mundo que existe para além de mim neste arquipélago de mundos que existem risonhamente sem mim e correm entre mundos e por onde posso ser despejada em luzes e instantes insignificantes que desprezivelmente insabidos são capazes de alterar o meu instante seguinte, o passo, a rajada de luz sobre meus olhos, a direção do meu riso na face de pó, de vento.

E se eu escrever agora, é para não fazer sentido. E perder a altura das mãos e a matemática das horas que me devoraram nos últimos tempos. Mas não mais, ou nunca mais.

Se eu escrever agora, então eu serei de novo o desconhecido de mim mesma, solta nos ares, nas patas da formiga, na maciez das nuvens, na frágil pequenez de um pássaro que canta assim tão forte. Se eu escrever agora, eu continuo dizendo não, como se assim dizendo… Só assim eu pudesse de uma forma mínima reconhecer-me como algo reconhecível, quando eu em mim sou e serei o desconhecido. O desconhecido me atrela a vida e eu existo desconhecidamente. Eu não sei a precisão das coisas que não me precisam.

E então, se ainda assim, eu escrever agora… Eu estou no horizonte. Sigo sem planos…



22.03.23