Sorte


“O dia que eu não sinto cheiro de sangue, de machucado, eu acho que eu morri. Sei que a vida segue nos conformes porque vivo com sangue e pus espirrados na bata.” (p.63)

(Há pouco mais de um ano atrás estava em Lisboa para acompanhar um encontro de escritores. Eu estava em expectativa, mas foi preciso pouco… Entre escritores, livros sugeridos e dados, eu me recolhia em cantos por não ser parte, permanecia do lado de fora. Naquele momento a sensação me deixou cansada, talvez triste. Não sei quantas vezes pensei sobre isso, sobre ser a coisa que escapa e não encaixa, sobre sentir dentro o desencaixe até mesmo naquilo que mais espero, ou esperava… Aprendo a não esperar e ser a coisa que escapa, o desencaixe. Naquele dia preferi de novo o silêncio anotado no caderno, as notas sobre enganos a não socorrer… Segui deslocada, distante, quebrada no eixo.)

Sobre Sorte de Nara Vidal:

Mas do encontro onde me desencontrava houve um outro estado, um sopro de voz e página. Eu já sabia qualquer coisa sobre Nara e a Capitolina, já tinha ouvido falar de Sorte… Então na programação eu conferia a hora, o tempo esperado para conhecer Nara na própria voz. Não lembro se houve atraso, mas no andar das marcações aceleradas, lá na frente estava Nara, falando em jeito próprio sobre escrever fora do Brasil. E lá atrás, talvez escorada em uma parede, estava eu completamente desconectada de tudo que não fosse o que Nara dizia. Havia presença, condição para aproximação e afastamento, compreensões outras sobre lugares de nascimento e pertencimentos.

Horas depois, das mãos dela alcancei Sorte e trocamos meia dúzia de palavras. Não fiquei para o jantar – preferi ir ao sushi vegano. Na manhã seguinte não voltei para o evento, passeei pela cidade.

Depois me contentei em pegar o trem e voltar para Coimbra. Semanas depois peguei o avião, fui para o Brasil. Andei… Peguei avião outra vez, voltei para a Europa, andei… Mochila vai, mala vem o livro Sorte ficou no Brasil, no armário onde mundos esperam regressos.

Pensei que a leitura teria que esperar, mas – graças a quem me confiou o kindle acreditando na minha capacidade de adaptação ao livro digital – entre um fim e um começo de ano li a obra de Nara.

Sorte me fez companhia durante um final de semana. Imparável e embora doesse não se deixava afastar.


“Pensei na mãe que insistiu até o fim com o seu olhar de afeto para que pairasse a bondade dentro da gente. Mas era muita violência, violação, muito sacrifício. O amor desistiu da nossa casa e fazia muito tempo.” (p.63)

Na obra, a condição histórica de um país feito de mulheres, com escravidão, imigrações, violência, religião e opressão. A ficção que faz reparar também o agora, no dobrar da rua em um dia de semana, em um dia hoje de reflexos não limitados ao passado.

Entre as linhas, o grito de vozes transpassadas no tempo, no recorte. Fissuras dramáticas da existência balançada num pano de fundo feito ao que lembra ser também parte do que contam livros didáticos e conteúdo escolar. Aos nós de tudo isso havia – e há – o tom sensível para dizer o trágico da existência, qualquer coisa de suave para falar em pesos arrastados pela história. Ao ler Nara Vidal escuta-se a voz essencial do traço singular. 

Nara foi uma das vencedoras do Prêmio Oceano em 2019. Mas sinceramente, este não é o dado importante. Sorte é uma história viva que move e desestrutura quem a toma nas mãos.


“Talvez uma das grandes surpresas da minha vida foi ter visto todas e cada uma de nós se apaixonar pela criança que nunca teríamos. Qualquer sacrifício nunca fora em nome de Deus. Absolutamente todo sacrifício era por vidas dentro de nós que seriam, indiscriminadamente, arrancadas da nossa capacidade, esmagando o que se conseguia ainda sonhar.” (p.151)

Sorte, de Nara Vidal foi publicado em 2018 pela Editora Moinhos.