A missa…

Andei às ruas querendo o cheiro das páginas de uma livraria. Tinha um destino escrito ao sair de casa, um receio deixado, um anseio por tocar páginas e lombas. Uma noite anterior projetada na ponta da lanterna à dimensão do dia seguinte.

Trabalho naquela manhã era apoiar a máscara nas orelhas, levar as luvas no bolso, conferir centímetros de vestimenta, guardar os olhos em tudo. Atrasar-me em tudo, desacelerar a projeção da lanterna e o desacostume dos pés.

Ainda não era quente, as ruas voltavam aos seus lugares. Mas eu agora já não lembrava a exatidão do trecho onde fora deixada a livraria. Refiz quadras, voltei esquinas.

Não sei se era feliz, mas não estava triste quando encontrei uma revoada de pássaros que contrastava o ruído retornado das máquinas. Um trecho de rua e praça por onde se ouvia o balançar das asas e dos bicos. Eram as bordas da Igreja de tijolos em cor queimada e era também o peso das portas abertas. 

As portas estavam abertas e aos arredores os pássaros giravam os ares como se nada tivesse saído do lugar, como se nada tivesse saído do lugar e retornado. Só naquele trecho refeito da cidade o barulho não chegava. Era um modo estranho, onde havia ainda silêncio e asas.

Eu em mim ficaria ali, na reza dos pássaros, na comunhão do voo. A minha forma de fé faria sentido ali, do lado de fora, na lírica erguida em torre e ângulos para o abrigo dos pássaros. Mas pensei em minha mãe…

Nas portas abertas, pensei em minha mãe e entrei. Não pensei nos choros seguintes, no choro falhado de hoje, no insuportável estado de ser, no dia lindo, na luz do amanhecer, no meu estado trágico, no meu desfazer…

Eu pensei na minha mãe... Numa manhã de domingo, numa cidade mínima, no silêncio que só entra na manhã de domingo quando quase toda cidade mínima dorme. Não vem o sol, tampouco chuva, é fresco, quase frio. Tem janela, pássaro escondido, um cão de olhos dormidos, gente dormindo na porta ao lado. Tem um eu fora de tudo, dentro de uma manhã de domingo...   

No que me tomou atalho se fez voz no púlpito, esparramada. Eu era uma música para chorar, para chutar na barriga, para não entender e mesmo assim querer amar, precisar amar. Eu era a mãe entrando na Igreja, a mãe rezando filhos, o lado de lá, a compreensão que só mãe pode dar, mesmo que não compreenda. Eu era a mãe entrando, dizendo para confiar. Era a mãe erguendo as mãos, segurando a minha mão, carregando um pequeno no colo, um choro. Um abraço que não coube dar. Uma mãe que faz feira antes da missa pela reza da saúde e faz um pedido de proteção quando nada (me) protege de estar fora do mundo.

“Mãe pede por um abraço...” Um abraço que me caiba, um lugar para onde nunca mais eu queria dizer “vou embora”, me ensina a dizer “quero ficar...”. Mãe, entro com seus passos, com suas mãos ranhosas, suas mãos feitas lixas resultado da química, do pano espremido, dos trilhos esfregados…

Eu estava no último banco, não ousei sentar. Mãe, eu olhava sem olhar os arredores, era talvez a veste mais jovem, todos os cabelos eram brancos e as costas eram mais curvas que as minhas. Os rostos estavam todos pela metade, cobertos. Eram rostos de fé, in-dosadamente feitos talvez da mesma fé onde você me embala. Eu baixei os olhos de canto, dentro de mim algo se movia, era como um jeito de dizer o choro que não chovia. E não chove...

Mãe, a comunhão foi antecedida por passos, mãos lavadas em álcool, o gesto das luvas e da máscara. A comunhão foi carregada até os bancos, aos pés cansados dificultados nos passos lentos, voltas feitas de fé e cotidiano. As imagens faziam sentido ali, eram todas sentidas, eu sentia a fé que se acomodava entre bancos. Não era maior o número no número de bancos vagos, da distância… Eu assistia a fé e outra vez enxergava as margens do Mar da Galileia onde a minha falta encontrou a emoção em prantos da mulher que no abraço do companheiro acalentou a emoção consolo para a imagem da sua fé. Mãe, eu faço a missa que agora não pode fazer, eu sento num canto e me deixo ser em você numa manhã de domingo em que espero o fim da missa para abrir a porta e receber de volta... 

Mãe, não havia senso estar eu ali se não fosse o último banco, um pedaço de canto e a minha quase lágrima diante da fé segura. Eu nos olhos e aquela gente que se confia. Mãe, há ainda uma manhã de domingo, quando tudo é mais silêncio, quando me deixam em casa dormindo para irem à missa, quando não durmo e levanto e vou sentar-me numa fresta da sacada sem vista, quando tudo é silêncio e é quase chuva e quase sol. Uma manhã cinza na qual estou diante de um passo, uma manhã que amo sem saber que amo. Saber que é amor é saber depois. São manhãs nossas para dias sem donos...

Mãe, eu entro, entrarei ainda, porque sou a falta da manhã de domingo em que vão à missa… A manhã na qual espero conferindo o fim através dos ponteiros, a chegada prevista para tomar café, para receber o nascer dos barulhos, os ruídos. A casa desperta para o domingo de uma manhã diluída, uma manhã de domingo que não acaba mais.

Entrei na Igreja, fiquei em pé no último banco....


21.05.2020
26.05.2020
27.05.2020