Como um dia a noite…

Recolheram todas as coisas, levaram os montes, os tombos, os entulhos, as folhas, os pesos, as medidas, o depois e o horizonte. Levaram o sangue e no lugar deixaram o aço incalculavelmente pesado, levaram a pulsação e ao posto do ritmo ficou a dor apertada, cada vez mais apertada em coisa qualquer.

Amanhecera e não havia mais nada. No entanto era um dia quente, quase exageradamente quente para a primavera. Pássaros cantavam sem salvar a manhã, os braços, o pulso… Nem o nada dito em nada que rondava um inexistir tornado, um giro sem antecedente ou expectativa de caminho. Sendo nada não existia, não havia, era só o acúmulo da dor angustiada de uma manhã linda demais para ser lembrada.

Agarrou-se ao filho que já não se mexia. Talvez tivesse escapado durante a madrugada quando o peso dos braços adormecidos caíram sobre o corpo no primeiro sono. A tentativa de despertar imobilizou-a nas curvas de si, aos arredores de luz e som. Estranhamente os pássaros haviam se aquietado e o vento não tocava as bordas da janela. A luz já andava pesadamente calma, claramente distante.

Girou meia volta do corpo, arriscou procurar a mão sobre o ombro. Era singular o redor que doía. Os olhos não se sabiam abertos nem fechados, a noite era o consolo inconsolável. E nenhuma explicação alternativa, nenhuma intenção proposta de amanhecer valia enquanto procurava por mão e cabelo num leito feito de um único travesseiro...  

Engolia a saliva, tocava os pontos doloridos, as curvas dormentes. Chegou perto da parede até abraçá-la. Mas o abraço foi só uma condição da manhã, vista quando já não havia cama e travesseiro. Quando só era o estado pleno e o corpo era um vago sopro perdido da forma da noite. 

Um risco foi o suficiente para desabar cidades, concretos que num canto de olhos vistos desabam em si mesmos desestruturados. E a pontura na cabeça são lágrimas que não correm. É a verdade e não é. Falta pouca para o desabamento... Foi preciso não querer e recolher-se feto feito num gole de si. E então ouvir cair por entre pele e nuvens o peso molhado do deserto. Foi na perspectiva de pronunciar que se engasgou afogada, era uma lágrima que corria comprimindo a sede. Foi no não querer que teve...

Mas nem mesmo o desespero sustentava-se. Os retornos cansaram-se, as retomadas para o mesmo lugar cansaram as portas trancadas. Tudo quase andava enquanto não saia do lugar. Navegava sem assumir condição. Navegava contrária a previsão de amor suspenso, história e risco. Não escutou os brados de impossibilidade, do impossível. Já estava apaixonada, esperando sem esperas, apaixonando-se e vivendo o escuro da noite transporta numa manhã bela. Não entoava a aferição da espera, tampouco se consolaria com grades do improvável ou condição ditada.

Não conduzia nem consentia um dentro um fora. Vivia pois nunca fora e nunca haveria de possuir palavra nenhuma. Pertencia, dos primórdios sem princípio até o fim, era do ar, do vento, da vida, da manhã e de cada também. Do acaso, o acaso mantém… 

Vivia o amor tranquilo, gestado imprecisamente no tempo conceituado de quarenta. Respirava a falta de forma para o amor desimpedido de toda forma aqui agora, a lógica, o cálculo, a página, a desmemória. Mas a manhã ainda é o que fora, uma brincadeira apaixonada, viva, ali, olha!, Olha porque já é memória, contação, é vida…

Anda à frente o horizonte...

Sustentava as dores e as penas e as asas, suportava a xícara quebrada e o café que faltará nos próximos dias, o botão quebrado, o gás parado, a comida fria. Engoliria todas as penas e as pedras, as pontas dos aços, os cacos do vidro. Embalaria a vertigem na cabeça e a rigidez dos ossos. Embalava o retorno do filho e a invenção criada em dois. Embalava nos olhos pesados do corpo preso ao movimento o jardim e o banco de madeira, as corda da música, um livro de páginas para o vento. Realidade é o que não existe, é o que chamaram de sono, é o que ainda não foi gestado numa palavra.

E foi por não desejar o mar que desvestiu o corpo na vontade de beber a água com sal doada pelos peixes, e flutuar o equilíbrio de derramar-se e desaventurar-se no limite rompido como tratativa de intenção irreconhecível das bolhas de sabão fingidamente escondidas. 

Pode ser que esteja certa a boca que professou o drama e a tristeza, o estar lá, o ficar, o não retorno, a volta presa do portão e das possibilidades limites…

Pode ser que seja o ponto marcado agora, o tempo dono que diz: fique! Cresça, inventa, refloresça porque depois eu levo, depois não explico, depois abro o encontro e o acaso. O inesperado. 

Portanto aquieta e acomode o esvaziar-se para estar, para ser o mínimo do grão de sal desmanchado na água, na luz do precipício. A batida na rocha, o ninho na margem, o fim incrivelmente nada residual onde está habitada por um sopro frágil essencial, é o mundo e é tudo... Desvira o lado mudo e acalma, aquieta e deixa - deixa-se - nas águas rasas, na terra, no calor da mangueira, no casco e na pele, no pó da planta, no fio da aranha, na corda… Aquieta, porque será na corda a canção para deitar gerando o mundo.  

Talvez assim será esvaziar os armário, confiar no silêncio… Sentar-se no depois e de lá olhar para trás, como não poderia ter sido antes, como não poderia ser outro. Esperar a fagulha da agulha costurada em cada pedaço de cada ponto para uma letra, cada caminho trilho e rastro que são delas papel para fazer. E fazem… Mas o tempo não é raro e não é caro, não é rápido nem é correr, o tempo são letras. As letras sabem quantos tempos escapam no que ponteiros não tem. Sabem que o varal conta a história das roupas penduradas, desfechos em cheiros amassados e sol tremeluzindo o meio dia…

Há dias paridos em si só como horas girando, girados com a pobreza dos ponteiros. Arrastados contrários à imensidão do tempo batido em ondas, a mutação das ondas, o batismo das areias e dos corpos na regência dos astros. Há uma previsão inscrita no firmamento como promessa e sem dívida… 


09.05.2020
10.05.2020
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13.05.2020