Normalidade…

Provei as palavras e o vazio dos tijolos, o deserto das ruas e a terra banhada. Provei a chuva feita das árvores que derramavam pela grama os pingos de pólen, um jeito de folha. E provei das asas dos pássaros, os passos bicados de um corvo no telhado. Gostei do peso das asas da borboleta que reaparece vinda da infância, a beleza desenhada com o gosto provado dos pincéis molhados nas cores respingadas das pétalas caídas, integradas a terra.

Provei do silêncio e o amei em mim. Das páginas postas ao lado da cama e as páginas rabiscadas nos meus dedos tortos, nas minhas mãos pousadas, os lugares andados longe daqui. Provei as paredes penduradas dos papéis pintados e das flores escoradas. Provei de mim...

Provei o relato da fome, a pandemia revelando outras pandemias já deitadas, alastradas por multidões que murmuram lamentos no escuro de câmeras mudas. Faz tanto tempo de qualquer coisa que foi sempre assim. Tanto tempo não noticiadas e tanto tempo a previsão acelerada da comida contada em dias, talvez horas. Foi só na ponta da língua que provei a escassez da sanidade acumulada em mares infinitos de números que agora… agora inventam outros números que são por faltas… Dos números que desenham a riqueza, dali não sai nada, não muda nada, não salva nem converte o mundo que falta… 

Há dores silenciosas que murmuram em porões, em pontes improvisadas como casas. Provo - e é uma falácia - a nitidez da pandemia que está derrubando as peças do dominó, espalhando o medo da fome, esquecendo a condição de fome que havia um dia antes, que estivera sempre ali...

Eu provo - e é uma fábula - o gosto, os diferentes sabores de fome, o desespero em portas fechadas. Eu provo o meu drama que não é nada, não é medo de morrer em casa, de fome, de tapa, com o ar em falta, com um vírus que toma a fruição de qualquer coisa além do ar. Poder de ficar e mais nada…

Os relatos dizem que o vírus é invisível, tão visível como aquele que murmura suplício até morrer virulento de fome e sede e falta. Morre vítima da escassez de vida e de bondade. Morre certo da condição racional de homem.  


Provo a tentativa. É quase criminoso resguardar-me com rosas e chuva, sol e café quente. Roupa limpa, cabelo e perfume. É um crime meu desalento, minha ânsia, meu desejo de amanhã. Um crime o canto dos pássaros e o florescer da primavera. Dura um instante a ação criminosa. Porque não fecho os olhos e não durmo e quase não vejo as pandemias que perduram do mundo de ontem. Ontem talvez ainda será um dia de futuro. 

O anterior foi quando senti cheiro de chuva, abri a janela, mas a chuva era chuva que corria em mim… O corpo se cansa e descansa. Os pés tomam nos ossos os passos que se arriscam no ar, como voo projetado, como os meses que andam, rostos que passam, mãos que acenam. Como lábios tocados e um dia antes quando coloquei na gaveta os corpos que secaram, desnutridos de ar. Eu depositava na caixa de doações os pacotes de pasta. Ninguém enxergava o pedido por comida, tamanha é a saciedade própria.

Às vezes a pintura da mãe é emprestada na imperspectiva… As vezes o sol fecha a janela, puxa a cortina, tudo se desliga. Os olhos descansam sob a pálpebra que vibra, do lado de lá respira a grama barulhenta que ergue o horizonte, um dia, enquanto um mundo não respira. A natureza não precisou de papéis em notas e não passa fome, se cria. A humanidade organizou os preços e escolheu a brincadeira da pirâmide. A riqueza infinita faz morrer de fome, esconde esconde, faz morrer entregando o vírus - são tantos. Há quem fique mais rico sozinho. Todos são vencidos, não saem do jogo, se perdem para ser enterrados com um número.

Esse tanto do tanto e de tudo, a corrida para erguer índices e gráficos, o acúmulo não serve de nada. Essa gente que se veste de número superado num ano, em mar de moedas douradas do desenho animado. A minha insensatez de não compreender diz que é só um número grande, estou com a criança que diz que os números são infinitos. Enquanto isso… Enquanto isso, bolsos furados, solas feitas pares de chinelo, a terra rasgada brotada com o nada.

Fugindo dos olhos, a vida que foge da precisão das letras. E foge da palavra amanhã, depois, futuro. Talvez da história já escrita, lida sem palavras, sem frases, sem precisão. E que ainda pode ser qualquer coisa que respira.

Na janela o cheiro da chuva. O amanhã hoje promete chuva nas nuvens que pararam e que agora brincam com o tempo atrasado, prometido, desistido. Tem palavras na chuva… 

Desencontro-me nos cantos da casa. Eu não canto, os pássaros falam e atrapalham qualquer ainda ruído de máquina. Mas a máquina programada se cala no girar da chave e o pássaro ainda fala sem parar depois que as luzes do dia se apagam. Os pássaros também cantam. E os relógios tornaram-se submissos ao correr da luz dia, a posição dançada nas cores no ar. E os cães sentam no asfalto dizendo que é ainda cedo voltar… É cedo, não vale a pena voltar para o mesmo lugar…

Não vale a pena voltar para o mesmo lugar. Onde vamos parar quando a chuva falar?

Despertei, foi o apagar de luzes, a desistência dos sinais. O cansaço do pedido, da explicação, da ansiedade, do para agora agora aqui. Desisto de olhos fechados, já fui, parti… Para onde vou agora?

Procuro os cantos pontos cardeais, desencanto-me de tudo, puxo no pontilhado gatilho o silêncio que inalo, respiro. Volto em olhos fechados, enxergo o mundo, é real, é ilusão, é mundo. Respiro… Fecho puxo a tampa da caixa, olho pelo buraco escuro, eu furo o dedo nos buracos saturados. Nas migalhas carcomidas aceito o pássaro eu que voa e bica o mundo que jamais conhece o isolamento. Está sozinho, está nu no mundo, jamais foi só isso…

Jamais é jamais…

Eu não quero que o mundo volte a ser como era antes… Eu quero outro caminho e quero quebrar a pirâmide quando o que grita é um silêncio sem testemunho, a escassez de qualquer outro, outra coisa nada, pois não há espaço para excessos, só o próprio excesso, a falta.

O que haverá talvez seja um caminho já aberto e ainda não tomado. E um lugar para não voltar. Eu quero que possam respirar o cheiro das rosas que tenho no quarto.


Eu não quero voltar, não quero andar pela normalidade.


27.04.20
29.04.20