A sala de costura foi improvisadamente alinhavada para modelar os trechos recortados da escrita. Na sala de costura remendei os meus pedaços e fiz a sua forma. Não era o jeito do cabelo, a doçura da pele, a calma dos olhos. Era o gesto que tinha ao deitar o rosto no meu ombro, acomodando-se no meu colo pequeno. Era a tranquilidade de ficar ali alisando as orelhas de um coelho feito na brincadeira, tão vivo quanto o ar que respiramos.
Eu não pedi para que viesse nem esperei guardando pela janela. Foi a criança que me quis. Então eu costurei os retalhos e os panos, as cores do invisível jeito que repousava no meu colo. O jeito que ensina a demorar a pressa do jardim que se apressa em pintar o horizonte. O jardim que se esquece nele mesmo enquanto acalentamos o abraço de colo, o peso que não pesa no repouso que não é dormido.
A criança tem o rosto escorado nos meus ossos rentes ao pescoço. É ali que ela caminha os meus passos para o horizonte. O cheiro vestido da manhã de folhas vivas e vento puro. Ao redor mora só a vontade da natureza que cedeu espaço para o pouco de nós em coisas. Não a interrompemos, esperamos que nos aceite e nos peça para ficar. Temos tudo, há tão pouco para carregar.
Respira tudo. Tudo respira quando sou convertida no colo de uma criança ensinando e ensinada a ouvir a natureza, a conversar com a natureza, a entender que se pode existir também sem fazer planos. Insiste em ser da vida.
A criança, que não era minha, era a criança feita com olhos atentos e demorados no sentimento da cor dar flores, na vontade das folhas de rir o vento, na curiosidade das nuvens de dançar histórias. Em mim, a criança chamava por mim e eu era da criança, nascida dela, contrária a todos os tempos concretados e pregados… A criança me tinha nos meus braços quando eu a segurava para nela brincar o mundo…
A criança espera que o mundo seja sempre aquele colo na auréola de um jardim a ser apenas contemplado, sem nada exigir. E estar nos pés do jardim deixado a ser apenas o jardim que quer ser, ouvido no mover das raízes, no contratempo das folhas secas, na maciez do verde reaparecido, nas pétalas que se soltam para libertar o cheiro. O drama poético que escreve sobre uma mesa e nas pedras que não se movem porque não querem, gostam da própria preguiça, da própria vontade de estar ali sob ramos e flores que caem e alimentam a terra e alimentam as abelhas, alimentam nossos olhos que esperam e expiram a vida que não rouba o ar do jardim…
Abaixo-me, acordada com os pés na terra, a criança ainda ampara o coelho protegido nas suas pequeninas mãos que abraçam o mundo feito nela. Aceito quando aceita que eu arrume os fios de cabelo para o lado, dali convido para assistir o protagonismo de cada vida que respira ao nosso redor. Tudo respira naquele instante e a criança aceita ficar depois das flores, aceita que o canto dos pássaros seja mais alto que a sua pronúncia. O correr das águas, o tempo de vida que em tudo pede para poder viver. Ela aceita a vontade de tudo e cada um com quem divide o mundo. E o mundo se acomoda acolhido nas cores, nas formas, nos calores e nos frios, no cheiro mesclado, no deslimite do jardim.
Ela espera o tempo que tudo tem para viver e ao mover os olhos sobre o mundo pede licença para que ali possa também viver sem fazer ruído nem tomar o espaço e o jeito que a minhoca tem de se sujar, sem desfazer a casa sutil e ferrosa que a aranha ergueu de um lado para o outro na janela. A criança encosta comigo na escultura que o tronco talhou em si, sente o coração que bate pulsando o ar discreto, não desfaz a cena em conjunto. A árvore fala e se abre para pássaros e abelhas e aranhas e até para as moscas e os micro-organismos invisíveis que andam sobre a pele...
Digo para que peça à cenoura se já a pode puxar, a intenção é alimentar o coelho. Ela pede acarinhando os ramos que balançam. E eu permaneço cheiro verde para as joaninhas pousadas em mim. Não as vi quando chegaram mas não impedi, sou lar. Não me movo, elas se movem certas sobre mim, sobre ser lar no fundo do cabelo longo…
Não estudo o rumor repentino e improcedente, eu respiro e é infinito. Deságuo tempo para tocar o princípio de si mesmo. Chamusco nos olhos uma emoção que não palpita, respira. O ar é vivo e não inventa linha intransponível. Somos arrastadas na segurança que a vida recria em si mesma. A vida está viva. O ato do que é vida ainda está vivo, respira. Seguimos por ela…
É verdade que ainda assim espiamos o jardim ao lado. Rimos para ele, somos inocentes…
A criança aprende a pedir à árvore se a pode abraçar. Ouvindo a resposta abraça e agradece a vida da árvore. E ela pede se o coelho que tem na mão também pode participar do abraço, o coelho também quer ser abraçado. E eu espero porque não existe tempo marcado no limite, nem corrida, nem pressa. O mundo é o abraço da criança que carrego nos braços e que carrega a árvore num abraço.
A criança tem o mundo, não é emprestado, é dividido. Eu aprendo na criança a esperar o tempo em que a árvore solta os braços no seu abraço. Quando for o tempo eu abrirei os braços para que ela e o coelho se acomodem em mim outra vez. Abraçado e abraçadas nos arredores da vida que nos tem.
20.04.2020
21.04.2020
22.04.2020