Pipoca doce…

Sábado comi pipoca, sexta-feira também. Fiz pipoca de jantar, talvez amanhã outra vez… Como pipoca olhando pela janela, escutando a fissura na pele como um teque-teque de letras saltitantes. Várias vezes na semana, não é raro, pipoca como janta. A panela é pequena para a quantidade de grãos que pulam contra o guardanapo preso fechado na tampa, coisa que mãe ensina e que se acaba fazendo por toda vida.

Não acho o jeito para dosar, exagero na vontade e nos grãos que saltam empurrando a tampa, as pipocas vão se apertando umas nas outras. Alguma escapa pelo fogão e eu arrisco queimar os dedos, faço malabarismo para não perder, me queimo. No ar se esparrama o cheiro, é pipoca ainda quente, ainda estourando no calor que restou na panela, no próprio grão quando os derramo num frasco redondo de porcelana pintada com formas de natal. Sobre a pipoca salpico cristais de sal. Depois a mãe remexeria a bacia no ar para espalhar melhor, para ver a pipoca saltitar ainda, outra vez, mas eu não o faço por receio de chover grãos estourados nos cantos escondidos dos armários, do chão, do fundo da mesa.

De tanta pipoca que não lembro em conta nem semanas, em um fim de dia sinto a cor de uma vontade outra. Talvez fosse uma vontade enquanto pipoca eu comia sentada no sofá. Eu e a luz morna que vem da cozinha, nós na quase penumbra, no gosto insalivado e impalpável, não desfeito… 

É vontade de pipoca, não aquela que não me impossibilita, não aquela de todos os dias. Vontade de pipoca doce. Mas não é nem menos a pipoca doce que poderia fazer aqui na panela pequena, estourando grãos e derretendo açúcar, engrossando a calda para onde a pipoca tornaria num caramelo crocante, não é essa...

A pipoca que sinto o gosto como vontade é pipoca doce feita no fogão azul. Bacias e mais bacias ao lado, esperando até que do litro se derrame o açúcar espesso, escuro, de bolas como balas. O açúcar sem embalagem, afunilado no litro reusado. O açúcar trazido da feira, lá alcançado pelas mesmas mãos que giraram a calda num tacho, as mesmas mãos que talharam na margem do rio a cana.

Pipoca doce porque já é sábado. Vamos levar as cadeiras para a sacada, lá é mais fresco. Vamos olhar o movimento da rua, quem se arrumou para ir ao supermercado, vamos espiar as esquinas. A bacia passando de mão em mão, o açúcar a grudar nos dentes, nas pontas dos dedos, na lembrança doce que não desgruda mais.

Mãe, vamos fazer pipoca?

Mãe, faz pipoca doce?

Vamos fazer um pouco de pipoca doce hoje?

Nos dias frios, sentamos aqui na cozinha mesmo, nas beiras de um fogão quente. Na janela a chuva se arrasta parecendo que nunca mais vai acabar. A pipoca está na mesa, é a reunião. E se alguém chegar sem avisar, faremos um pouco mais, mesmo que diga que não… Ainda temos um pacote fechado. E para nós um punhado.

Nesse apetite de sentar lado a lado, nas nossas mãos as bacias se trocando, salgada e doce. Esse mastigar que ouço dizendo “menina não coma piruá, vai quebrar o dente…”

A pipoca vontade doce é a que deixa gosto na cozinha, no fim da tarde que chama quem está no computador ou dormindo na poltrona, chama as quatro patas que despertando com o estouro dos grãos vem pedir a sua parte. Para os pássaros também tem, ofereço grãos no parapeito da janela, lanço-os pontilhados no gramado, lá embaixo os passarinhos bicam… 

Vamos comer pipoca, lanche da tarde, é até enjoar, até passar a vontade, até a vontade voltar. Tem pôr do sol na janela e é o único, é uma única vez. Por toda a vida é uma única vez que será ali e assim, na janela da cozinha onde a mãe está fazendo pipoca doce…

Ela abre a porta do quarto sem bater, “vamos comer umas pipocas?, chega de ficar no quarto...”. Eu paro o que estou lendo. Quando chega a hora da pipoca eu paro o que estou lendo, pulo e vou para perto. É o instante alegre que não se percebeu. 

Na despensa há uma panela de ferro para a pipoca, é sempre a mesma. Eu escuto os grãos batendo no ferro, as teclas letras da memória batendo. 

O gosto que procuro nas papilas é da pipoca doce de casa, onde a mãe faz no jeito acelerado das mãos, com água e açúcar e tempo de chama. Com as bolhas subindo e a colher na mão girando enquanto belisco uma pipoca aqui outra ali, impacientemente cheia de vontade de que aquele fim de tarde nunca acabe -, minha felicidade é calma e se deixa esquecer, lembrando-se só quando quer, minha felicidade é impercebida e leva tempo para se encontrar feliz.

Com um pano a mãe segura a panela por uma das abas, o contorno quente. De quando em quando mergulha a colher e a ergue no ar deixando cair o fio dourado escuro, escorre o doce da minha saudade. 

Tenho vontade de pipoca doce, vontade da pipoca que se fizesse não afastaria a vontade, talvez a tornasse ainda maior. Me falta aqui e agora o canto da casa, o fogão de onde fotografo as mil poses do sol, onde sento no colo, onde choro, onde olho as estrelas da noite, onde sou desde a infância a criança perdida no espelho. Me falta o fim de tarde com pipoca e chimarrão. A pipoca doce que só existe lá… Será sempre lá…

Mãe, quando eu chegar faz pipoca para mim? Eu vou ficar nas beiras da pia, vou olhar você girar a colher, vou dizer para não bater porque o barulho me irrita, vou dizer que é muito açúcar, e você vai me dizer para não por tanto sal na que foi separada… Eu vou te contar sobre alguém… Você vai perguntar… O que será que você vai me dizer? 

Pergunte se eu amo…

Pergunte se haverá amor como há nos fins de tarde quando sentamos uma ao lado da outra comendo pipoca doce, tomando chimarrão. Sim, depois eu vou… Hoje eu vou caminhar com vocês… O que vamos fazer de janta?

Mãe, faz pipoca doce quando eu chegar?

Faz pipoca doce quando meu filho chegar?

Mãe, faz pipoca doce, vamos sentar lá fora?

Chove colorido aqui dentro…

Meu amor sorria para mim, amanhã eu vou levá-lo comigo para viver um fim de tarde feito de pipoca doce…


30.03.2020
31.03.2020


Canção: El tiempo está después - Interpretação Jorge Drexler...