Andrà tutto bene…

Saí…
Era preciso…
Era o que fora determinado como necessidade…

Cada passo dado era a direção de um lugar redesenhado em medida de emergência. A precisão das coisas postas mostrava como tudo estava fora do lugar.

Estendido estava o silêncio sobre todos, como um lençol recém lavado tirado do varal. Os pássaros sentiam-se mais perto, suas vozes mais altas. Mais perto... Ainda na noite quando números inventaram cinco da manhã depois do sono ruim. Da falta do sono ruim eu os fiquei no escuro, no ouvido, no afeto abraço que são... 

A natureza me afeta, me torna afeto, me encolhe feto. Me abraço. Na natureza me abraço...

E alcançar o único pássaro que não cantou amorteceu os meus sentidos… Estar com o pássaro que não cantando alcançava a estranheza do dia - dia que se repete em dias - rompeu os meus sentidos. Desaguei passos, passos contados, ida contada e retorno. Nossa função de afastar… Minha função testemunho, registro. Minha função de sentir o riscado destes dias, por estes dias… E não sentir medo e não haver falta e suportar o peso das formas ocas e tensas do pássaro que não canta na manhã. Não canta porque tudo ficou estranho de repente e o pássaro estranha o apagamento das cidades e o silêncio pesado nas ruas, a falta da esquina e das calçadas…

Na esquina de uma sacada um pássaro negro pousou as patas frágeis, não abriu o bico, não se distraiu em ser pássaro, estranhava… O silêncio, o bicar mais alto dos pássaros, o barulho das flores abrindo asas, folhas recolorindo. Da esquina sacada o pássaro negro observava a repentina mudança ao redor, o silêncio, os raros. As penas miúdas de cerejeiras e a intensidade das magnólias que se fazem chover num fim de tarde irrepetível, invisível talvez… O tempo contado a partir das árvores, das lagartixas e tartarugas que submergem da terra ao sentirem que o frio se afasta. Pássaros… Pássaros passam em mim. E a arranha costurando a leitura não lida...

Cada sinal de vida que continua a ser fabulada é o que importa durante a tarde. O que importa nas horas de sol, na incerteza do depois, no fato… Ato que escapa do nó amarrado, determinação e controle… O ato que controla a parte daquilo que, de modo algum, (se) permite ser controlado. A vida é incontrolável… A vida que escapa carregada pelo exército no asfalto da cidade ao lado… Viver é incontrole. A vida é incontrolável.

Nas beiras da autoestrada o pontilhado das máquinas escassas. Destaco-me por poucos segundos as beiras, não fico para observar… Sigo e depois confiro o que continua lá, o poste, a corrente elétrica. Novidade são flores brancas no jardim da casa abandonada e as bandeiras das crianças que estão suportando o mundo com lápis de cor e arco-íris.

Junto-me a elas e no silêncio que se cansa denso molho as cores, escoro o papel… Na rua só eu… Eu só…

Quando o vírus não encontrar ninguém… Vai desistir… Ficará só...

Não sei o que penso enquanto atravesso a rua, quando a chuva cai no guarda-chuva, quando escondo meu rosto amarrotado da noite na curva do guarda-chuva… Não conheço o que penso. Sinto…

E escrevo.  

O incontrolável que me escapa, que me fez escapar. Que inventa, me confabula para estar, ser, estar…

“andrà tutto bene”, fala o silêncio do pássaro que não bica a manhã pálida quando reparte a voz daquela hora aos pássaros... 

Se fosse parada pediria para reparar comigo a estranheza do pássaro estranhado na mudança das nossas ruas, dos nossos rostos, nossas mãos… Diria que… Diria…

O silêncio está tão alto...

Do lado de dentro das paredes e janelas abertas crianças tomam nas mãos pincéis e cores, riscam o arco-íris de abril, pedem ajuda aos genitores dizendo “andrà tutto bene…”

“vai ficar tudo bem…”

As cores das crianças deveriam ser as únicas bandeiras impostas. Hoje são as bandeiras que mais importam. Estão hasteadas nas janelas, nas portas, das sacadas.

E quem precisou sair lembrou de deixar recados nos postes, nas paredes… “andrà tutto bene…”

De volta para casa, a espera da flor presente a ser plantada e as bolhas de sabão… No portão, a caixa e a carta… Não nos aproximamos, espero até que a máquina parta para então pegar o que foi deixado.

O portão escreve, “...andrà tutto bene…”

Esperamos pelo tempo que deixará aproximar… Vai ficar tudo bem…

Digo a flor para ter calma enquanto desaperto as raízes. Espalho bolhas de sabão pela cozinha, formas redondas pelo chão. Não espero a cor… Sorrio por ser lembrança para bolhas de sabão e flores que querem a terra, lembradas a mim… No dia seguinte bolhas de sabão sob a chuva mansa, nas asas de pássaros e pétalas… No recordar-se depois...

Bolhas de sabão da minha boca, no meu ar, do meu instante mágico que não cessa, que não seca na insolação isolada…

Não saímos de casa. No lado de dentro nada aperta… Livre sobre nada floresço… As flores têm cheiro no ar. E eu que não sei pintar arco-íris, escrevo e distribuo letras coloridas, penduro pedaços de papel… “andrà tutto bene…”

Adormeço nas flores do céu azul royal, para a cor das crianças coloridas… “andrà tutto bene…” É o que me dizem e sinto mais forte que as interrogações adultas, in-sentidas...

É o que me dizem a intenção do pássaro, o caminho na chuva, um outro canto, outro bico que parece aparecido, inquieto e seguro. Um pica-pau chegou com cores nas ruas e árvores e sacadas entregues aos pássaros e as bolhas de sabão…

Ainda será…

Andrà tutto bene…


13.03.2020
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