Acumulo o barulho da noite, barulho não há…
O silêncio quase descansado adormece.
Tudo está cansado,
Há uma exaustão fatigada que espera que o tempo passe,
ultrapasse o cinza do dia.
O silêncio solitário da manhã.
São noites de lua cheia.
Pétalas de borboletas.
Vontade de dormir no vento. Como as nuvens que ergueram os braços no último dia em que abrir o portão era possível.
Restada a casa ganho a companhia dos pássaros e, de calma em calma, tomo a lição de reconhecê-los.
Alcei os olhos do livro quando tocou o ar o bater de bico no tronco no alto da árvore. Voou o corvo, mas aquele ruído não o era, era a primeira vez no ouvido. Considerei os movimentos música dos que me fazem companhia como conhecidos que acompanho nos meus olhos postados da janela em inícios e fins do dia. Com eles divido o mesmo tempo do sol, a mesma árvore na qual somos abraçados, eles e eu.
Impedida de abraçar pessoas abracei a árvore. Antes, entretanto estendi minhas mãos como forma de pedir reciprocidade e não tirá-la de sua autonomia. Com o consentimento aproximei-me do tronco, existia a canção de um canto de casa e distância e a invisível teia brilhante guardada contra o sol chegado macio, só reparado quando soltei meus braços de todos os braços da árvore que abracei. Meu abraço na árvore.
Mas de meu… De meu não há nada… É um pecado que tenha sido a clausura a me fazer voltar ao jardim, reolhar a árvore e achar que é direito abraçá-la depois do tempo... Depois de abandoná-la sem abraço e atenção.
O jardim e a árvore não guardam mágoas… Momento que sei e me desculpo.
Sentada no banco, distraída - outra vez - na espera do tempo, andou diante de mim a aranha encolhida tricotando o vir, passou por mim e nem reparou que estamos distraídas à espera do tempo que a ela não serve, segue... Estamos onde devemos estar. Não há outro lugar qualquer para estar. Para a aranha estive sempre ali, sempre aquele pedaço do jardim conversado na erva daninha, das flores não colhidas, nas flores trituradas pela máquina e nas pétalas que apodrecerão quando passar o vento e cair a chuva. Não poderíamos estar em qualquer outro lugar. Não poderia eu estar em qualquer outro lugar.
Uma pena entre folhas passeia e se acomoda na suavidade da folha ainda prematura clara que começa a apontar no galho.
Passeio pelo ar.
O portão não bateu. Achei eu que não, mas sim… Limitaram… Limitaram os passos que posso dar. Passaportes não servem sem a permissão de estar na rua, de ir e vir. Sair só em caso de extrema necessidade.
E se eu disser que há mais de uma semana não vejo o cão de vida quarentena que guarda a esquina da nova construção? Se eu disser que ele estranha a falta da minha passagem? O cão que visitava quase todos os dias e todos os dias parava do outro lado da grade só para que nossos olhares trocados se fizessem companhia. Eu para ele, ele para mim.
E se eu disser que estou gestando as flores das ruas até que o dia chegue e elas caiam?
Se eu disser que é necessidade deixar que alguém me encontre distraída na cor dos legumes, no infinito do céu e lua, nos meus estranhamentos? Se eu disser que é necessidade divertida jantar uma bacia enorme de pipoca e ouvir sempre a história de que pipoca não é janta?
Escrevo ao cão, as ruas, aos rostos que estranham meu estranhamento: Falemos por dentro e tenhamos paciência, até que seja possível sair... Explico que não os abandonei, mas por estas semanas precisa ser assim...
Pode existir graça ao ver as distâncias sendo tomadas. Ontem a noite assistindo a janela, três amigos passaram pela rua. Um na margem esquerda, outro na direita e uma no meio, na linha que divide ir e vir. Era como ver reticências andando.
No edifício próximo a mãe segura o filho no colo, de lá a criança alça a voz para conversar com o casal de idosos que está no jardim da casa ao lado. Se afastam sem se afastar, há sinais da nossa intenção de estar.
Na manhã de hoje nem os cães vieram passear.
Há semanas as missas foram suspensas.
Ontem a determinação de que também restaurantes, bares e cafés estejam fechados.
Toda a vivência cotidiana dos italianos fechada por medida de segurança e proteção.
Nos últimos dias o carro da polícia local se arrasta pelos quarteirões empurrando o alto-falante, avisando que só estamos autorizados a sair por motivo de trabalho e saúde, pedem para que os cidadãos fiquem em casa. Eu só penso que se não posso ajudar de outro modo, ao menos tenha a responsabilidade de pensar nos que estão ao nosso redor, nossos vizinhos idosos e aqueles de saúde sensível… Se para minha saúde essa doença não é um risco então que eu não esqueça que para outros ela é… A vida das pessoas ao meu redor importa. A vida de todas as vidas do mundo importa...
...As vezes os únicos ruídos são sirenes…
Quase leio os comentários, as piadas, confabulações e teorias e dados infinitos que circulam sobre o vírus e sobre as medidas que estão sendo tomadas aqui, epicentro da doença. E a verdade é que todas e tantas exposições publicadas não me fazem sentido algum, não me servem de nada. Eu tenho o que sinto nesse instante de vida que dura o tempo que estamos contando atrás do portão, nos risos que mantemos falando de uma janela a outra, de uma margem de muro a outra. O que temos é o que estamos sentindo agora e como estamos aprendendo a lidar com um vírus que alcança pessoas… Pessoas… O que eu tenho é horizonte que pede por serenidade, que me isola mergulhada em mim para sentir o que isto pode dizer, o horizonte para o depois desta história, quando se escreverá nas histórias esperadas, esperando por nós e pela minha intenção sentida em quem me protege, me cuida agora.
No isolamento do vírus, em aquarela e livro, natureza e sorte por ter o jardim e os pássaros, e a voz das vozes e violões dos homens Veloso, os dias de hoje me julgarão como louca enquanto sinto amor…
Eu não sei explicar.
Sentimento, amor adormecido... Tanto tempo adormecido e que na eclosão do vírus a volta despertou, paciente e contido, para as crônicas do depois, depois de amanhã, depois do fim do mês, ao esperado princípio de abril. Ninguém sabe o que vai ser, o que acontecerá… Speriamo é o que dizemos todos… Esperamos… Eu protejo e seguro leve o que vem germinando.
No vírus do isolamento me sinto próxima... Este lugar, esta história, esta gente. Me sinto em ânsia por viver, por vida. Vida agora e a aquarela do depois e tudo aquilo que devo e espero...
Estou fechada entre a porta de trás da casa e o jardim e os pássaros que quase posso chamar pelo nome. E sou parte. Uma pequena parte que espera que nossa distância passe logo e que logo… Logo os abraços e nossos risos estejam livres para andar e desamarram as margens e os portões.
Guardo os cães passeando...
11.03.2020
12.03.2020