Natal

Nos últimos dias escrevi páginas que não se sustentaram. Rabiscadas em folhas amarelas, ficaram por ficar. Foi entre um respiro e um suspiro de véspera que as palavras mais sinceras chegaram como um recordo. Diante de tanta frase e tanta letra torta, o que sustentou o gestar do mundo foram os minutos que estanquei no pontilhão. Haviam carros em todos os lados e para todas as direções. Corriam sem ver o topo branco da montanha, o sol expandido no céu, um brilho risco de lua. Sob meus pés o concreto tremia medroso, inseguro. E a vida poderia ser resenhada – resumidamente ao essencial – ali, nos minutos que parei distraída de tudo. Distraída de tudo, sem medo de tudo. Escurecia e eu acompanhava o sol correndo sem o ver, eu o tinha na página onde o azul corria enquanto minha mão fria corria na linha. Nenhum de nós estava contando o tempo. Era só o tempo do tempo ser.

Era a véspera da véspera em que fui sem direção, sem pretensão de chegada ou de encontro, sem prendimento ao pensamento de quem passava e não me via me vendo…

As voltas confusas de um ano denso puderam ser aquareladas aos tons que nasceram ali nos minutos que estanquei no pontilhão ouvindo os carros, reparando na distância dos meus pés até o chão, na proteção, no ponto do outro lado, no segundo que quase sentei no chão, que quase chorei. O attimo em que fechei os olhos e deixei que o nada me levasse e que por um segundo eu fosse só o ar sem o onde, sem ontem nem amanhã. Só um instante…

Eu não autorizei nada, não havia controle, proteção, ou poder. Era só o eu fora da margem, um ar com luz e olhos fechados… Que levassem tudo… Estava aquele segundo no ar ao voo do corvo estacionado no poste cortando a exatidão dos carros, da linha reta. Eu era tudo parado num ponto preciso e vaporoso – inexistente – enquanto o resto do mundo fazia o mesmo exato giro. 

Eu principiei escrevendo sobre outro lado: “Eu não vou dizer que quero estar em outro lugar. No colo da mãe, na conversa do pai. Não vou dizer da vontade de deitar na grama, de me emaranhar em folhas, na ranhura da grama dura do sol, de estar ficar olhando uma canheta (cachorra) na grama, como uma igual. Não quero dizer sobre como pode ser belo estar com três crianças, em ser a quarta girando os pedais de uma motoca.”

Eu não sei explicar como nem porquê, mas estou só como nunca nunca antes. Em algum senso estou como e onde devo estar. Não há falta hoje ou agora. Nem o lamento da morte… A falta que sentirei para sempre, a falta que já não falta mais. Eu aceito a reinvenção.

Ontem andei pela cidade. Me perdi. Ignorei as horas, as voltas que fui fazendo sem intenção de chegar a algum lugar. Eu segui.

Eu não gosto de falar sobre os anos, demarcar território, experiências. (E já agora admito o quanto me desgosta encarar a literatura em número de livros lidos durante 365 dias de um ano, como se um número fosse aval para algo.) Não me agrada dizer o que é bom ou não.

Eu tenho o que sinto…

Eu já me convenci, eu vim experimentar. E provar tudo um pouco, provar de um jeito outro, provar o gosta da chuva, da neve, o estar em qualquer lugar que ainda é mundo, mesmo quando é só a passagem de passos e bicicletas. Pontilhões… Provar até mesmo os pontilhões e as pontes…   

Eu vim e eu vou riscar uma outra palavra para lembrar de Zoki que me conheceu um pouco antes de mim. E lembrar do que Zoki disse… Sobre… Eu mesma, sobre o que só ele já sabe que será… Sobre o que eu ainda tenho dúvidas e receios. Porque eu ainda sou uma garota insegura e sem confiança. Eu sou uma garota que não sabe e jamais poderá saber a idade que tem. Sou velha e sou criança. Não sou bela e não preciso ser. Só há o jeito/forma  quando escrevo – de resto talvez seja só um apagamento.

Mas mesmo assim vou dizer que no quase fim de ano quando outro não chegou já noite, eu pensei que deveria parar, parar com isso de dançar no escuro e colorir horizontes sem paredes, parar com essa brincadeira de escrever e não ser escritora, eu pensei que não posso mais… Mas eu logo então também pensei… Não eu não pensei, o pensamento me pensou: Eu também sou Van Gogh com orelhas decepadas e tintas nas mãos, sem dinheiro e sem reconhecimento, mas com o próprio mundo respirado. 

O que devo parar é de sujeitar minha subjetividade ao julgamento, a rejeição. Devo acarinhar que sou das letras erradas, das conjugações erradas. Porque se quero respirar nas cores e formas inexatas singulares, mais do que ser reconhecida em papéis publicados, então devo continuar conjugando, me sendo, me sentindo, me fazendo mundo – sendo errada, vagando ao nada. Porque cada nunca e cada não passam. E eu escrevo. Não eu não escrevo, eu sou escrita. Com o tudo e o nada. Com silêncio e vagar de um mundo que eu vim para sentir na boca, nas mãos, nos pés, no sangue, na minha alma, no meu abstrato eu.

Eu não sirvo para falar de anos e retrospectivas. Eu tenho fome, é 25 de dezembro. E eu não consigo parar de desdobrar um bilhete que me serve para sentir as fissuras, as ranhuras e a maciez do tempo que vem correndo numa forma que telejornais denominam como ano.

O que sei é que derramei lágrimas não de pesar, de emoção… Derramei prantos de morte, de fins, de receios, de erros, de indiferença. Mas no fim esperei a chegada das lágrimas na minha boca e então eu bebi do gosto. 

Nos últimos tempos eu redescobri meus pais e o que quase tenho deles, de como não precisamos de intermediações. E como na minha forma de mundo eu os encontro seguros sobre o meu engatinhar lento e cambaleante, meu…

No recorte do tempo aproximei-me aos recados da infância, a voz no espelho, a aparição soada no ouvido… Agora é lembra-se bem o que é, o que será sem o que sei…

Não será o mesmo caminho de sempre.
Não será tampouco o mesmo caminho para escrever.
Escrever antecede-me. Antecede-me tudo.
Talvez também espere até bater a porta outra paixão – nunca antes. 
O extraordinário. 
O extraordinário…
Porque eu quero sentir o mundo sempre.
E amar tudo de novo como nunca antes.

Por mais que eu queira – muitas vezes – por mais que eu já tenha implorado, pedido, exigido, a escrita – eu já entendi – não vai me soltar, mesmo quando quero ser só. Escrever me antecede. Eu não posso explicar, dizer, não pude decidir ou escolher. É assim e é por isso que haverá a sucessão de nãos e eu escrevendo. Cada não é nada e não é eu nem o que me antecede, é só o mundo dizendo que estou na própria conjunção.

E como poderia eu não estar aqui quando há pássaros do outro lado da rua? Eles esperam por mim na raridade das próprias cores das penas.

Os tempos que passaram numa fração recortada a esta lógica de tempo ao qual não me permito estar, esfumou a matéria de alguém, desfez as mãos de um longo relacionamento, me deixou sem retornos e sem respostas, os nãos.

Mas ainda não quebrei o braço, fumei o primeiro cigarro, não vomitei de bêbada, só vomitei. Ainda não me apaixonei como nunca antes… Ainda não dancei no pontilhão com fones de ouvido como quero fazer, – mas de verdade quero isso com alguém que queira também – quando os carros passarem sob os pés e meu tênis furado. Deste tempo eu perdi o medo de sempre e foi quase assustador. Eu andei sozinha pela rua depois que a tarde escureceu. Eu parei todas as vezes que vi que os cães pararam para mim, nossos encontros de carinho e de abano… Eu abri a janela depois que escureceu e parei nas esquinas para ver Vênus e o sol correndo. Eu parei no pontilhão para escrever, eu ri sozinha e nem reparei. Eu ri quando me acharam tonta por olhar as estrelas do céu, a luz da lua cheia… Eles falavam sobre uma vida de merda sobre não ter tempo para nada… Eu acordei a madrugada para ver a neve caindo, eu esperei com a porta aberta e deixei que passassem a minha frente no supermercado. Eu passei o primeiro Natal sozinha, quase dormindo, quase bêbada, quase rindo. (Des)conjuguei curiosidades de descobrir verdadeiramente a cor dos olhos de quem passava ao lado. Não menti sobre mim mesma, sobre estar só no dia de Natal, sobre a cor do meu cabelo e as pintas da minha cara, sobre não comer animais e sobre ser mulher. Não me sobrepus com rótulos e títulos que não quero carimbados em mim. Não enganei ninguém, ninguém… Quando me perguntaram o que eu faço: Eu escrevo. E isso é tudo que eu sou.

Eu estou aprendendo. 

Esse ano eu estou aprendendo outra vez que eu escrevo apesar de cada não. Apesar de não agradar, apesar de não ser como deveria ser ou como se esperava que fosse, se se tratasse de literatura de qualidade. Mas eu estou aprendendo que não escrevo por qualidade, por atualidade. Eu só sei escrever deste jeito… Deste jeito errado é como escrevo e é tudo que poderia ser se é para ser eu escrevendo…

E neste tempo despendi de horas do tempo para observar pássaros e me encantar com corvos, o dançar de folhas no ar. Eu despendi do tempo para falar com cães e olhar as cabras do outro lado da rua. Eu gastei meu tempo conversando com velhos senhores de passos lentos, com crianças envergonhadas, com escritas árabes do meu nome… Eu despendi mais do meu tempo pelo meu silêncio, pelo meu jeito. Aprendendo a respeitar o meu jeito dissonante, (des)consonante de tudo que ainda me dizem que deve ser como é…

Mas todos os dias eu quero sentir o mundo correndo na minha pele, em cada passo que invento entre poças de água acumulada. Eu prefiro que seja deste jeito…

A cada dia eu me encanto e me encontro apaixonada e sinto a falta… E quero mais, quero inclusive a paixão que queima em amarelo, quero corpo a corpo e contraste. Quero sentir o mundo e o gosto de tudo. Como estou aprendendo, como estou fazendo e escrevendo no dia de Natal. Não arrisco nominar sentimentos ao fato, há qualquer coisa de sereno e profundo. Há tanto que poderia desalinhar deste tempo que foi riscado num traço denso. Mas não o faço, ainda será do tempo que vem gestar o que foi sendo…

Não há lógica, nem princípio ou conclusão nas frases antecedentes ou seguintes. Há qualquer coisa que sinto e foge. Há sempre o que me sente e de onde não escapo.

Por hora… Não há hora, é o dia que chamam de Natal e a canção que parou por si. A janela me tem… Outros minutos (in)contados onde o mundo pode caber.

25.12.2019