Terceira pessoa – eu

Não via sentido. Disfarçava, como se fosse personagem riscando dores de mundo… Como se através do beijo não dado colocasse em outra boca um dia próprio. 
Não havia sentido…
Palavras faltavam, fugindo.
Sentimentos ficavam parados pela metade, inibidos, inseguros. Não confiavam na imposição de outra pessoa.
Era eu quem os amparava.
Eu que os embalava chorando, chorando, chorando no colo frágil e morno do meu.

Não pensou,
Respeitou a singela força do (in)controle. A máquina voltou a bater as teclas da primeira pessoa…
E o corpo sem corpo respirou outra vez,
Ressuscitado
Tornado a vida,
Costurado a pele.
O concreto mundo derrubado
Abrupto e incapaz de impedir.
O mato não insistindo
Se fez
Crescer.
Era eu...

O ar voltava
O sol inventava
o início da noite antes das cinzas da tarde.
E um sensível pássaro apertado na gaiola sentia cada coisa - que não era coisa - desfazendo uma invenção frágil demais.
Um pássaro inventado bicava as grades até voar no céu da primeira pessoa. No sonho ilimitado do céu ou da gaiola… Um pássaro no topo da árvore, no limite do crepúsculo, perto da meia lua, longe das lentes fotográficas que não alcançam a imagem densa do mundo do fim da tarde…
Nada existe.
E então existe...

Só o eu minúsculo e o pássaro frágil. 
A boca nas mãos. Era eu quem falava.

Era eu
Sou eu
No rasgo
No rastro
No ventre
No vento
no chã gasto
Chuva
Chuva
Chuva.
Na boca do desapego dançam solitárias faltas…

Pediu licença e abraçou a árvore do jardim, agarradas e sentidas uma na outra seriam capazes de sobreviver por mais um dia. Amparou nos olhos os morangos que nasciam apodrecidos, afogados na chuva. Arrumou cada gota escorada na janela. Depois tomou na mão o bafo da água quente do banheiro e desenhou no espelho um círculo infinito. Desaparecido no correr da meia hora.

O mofo no céu,
A poça nos pés
Sacolas de supermercado nos pés.
O livro molhado
A calça molhada
As mãos geladas
Um dia a mais do início ao fim só
Na sala
Na cozinha
Na rua
Na cidade
Na música
No silêncio
No silêncio

Na imposição da poesia.

Queria dizer e não conseguia
Queria profundamente existir na terceira pessoa
só para - talvez - afastar de si o drama de quem quer andar e tem que esperar sentado. O drama teatral construído em cartas empilhadas, remetentes fugidos, destinatários abandonados no balcão do correio, na negação, no documento - uma folha de papel que não vale nada, não vale nada, não vale nada. 
Vale mais que o nome de quem diz como dizer…

O rosto era pálido, encarado raramente, raramente perguntado se era belo ou não. Está limpo e liso sem qualquer realce. Nada além de um rosto pálido. O cabelo amarrado.

Arriscou subir no muro e andar ali, no limite, na fronteira. Subiu. Fechou os olhos e o topo das árvores começaram a sussurrar os passos sobre tijolos e vidros. Lágrimas riscaram o rosto pálido. 

Cada palavra sangrando
Doendo
Chorando
Recolhendo os ossos
Balançando
O guarda-chuva
Queria dizer
Eu.

Uma palavra em cada linha
Cada linha invisível
O invisível som do
Eu gritado
no silêncio e na espera
Na construção da própria invisibilidade
concreta
Existir
Ser
Não estar

Dormia de roupa
Mantas enroladas no pescoço
Nos pés dormentes...
Nas pernas (im)percebidas
Cobertores dobrados.
Dormia enrolada nos livros 
empilhados na margem da cama
Num canto lugar recriado
Abandonado
À máquina de costura
E a ponta que adormeceu um conto
Agulha
uma fábula
um ponto prolongado...
reticências
espera
amanhã
não sei
quem vem
o mês que vem
quem vem
o que vem
não sei.

Os quadros
retratos…
Terceira pessoa.
Desfigurada e sem palavras.
Eu.

08.11.2019