Tenho dentro um Van Gogh. De orelhas que foram decepadas pelo ruído insistente no ouvido. Cobrança que chegou com juros.
Eles empurram garganta abaixo — como num pato de indústria de patê — o mundo que eu deveria ver. Eu não vejo.
O dinheiro quase sujo, nos apodreceu numa manhã sem água nem sol. Mas como Van Gogh tenho uma voz aqui dentro e depois eu não lembro… Eu já não sei como arranquei um pedaço de orelha, como embrulhei em presente, como desfiz meu silêncio em silêncio inteiro. Um quase que refaz prosa em quase pintadas árvores de dentro quando aparecem as árvores no terreno. Eu quase Van Gogh… Sem arte se fez artista inteiro, tinteiro que pintou o vento…
Eu não vejo e quase percebo. Van Gogh respirou a arte em olhos inteiros.
Nesse tal mundo onde vivi – presente – ausente pintando riscos ao ar livre nenhuma arte é vendida. Morre infeliz feliz…, porque — seja racional — por estes lados e nestas terras a realidade aprendeu como ser cruel e o preço sabe cobrar. Mas pobre Van Gogh, que sobre ser pobre não soube nada.
Pobre Van Gogh, quase esqueceu que levava na mão o jeito errado de pegar o pincel. Que tinha jeito, e não percebeu, para olhar rápido e transformar poucos dias em tanta arte.
… Não conheceu etiquetas com preço de existência.
Como Van Gogh, se ele me der licença, eu também poderia distribuir minhas partes entre caixas concretas que não suportam meias ideia que viajam sem moedas em bolsos de pano. Morremos pobres apenas nos bolsos. Apenas nos bolsos. Morreu pobre o apenas Van Gogh.
E depois?
Depois alguém estampa numa parede de iluminação em projeção especial não a pintura da alma livre, desenho do próprio mundo, infinito particular de uma mão livre que correu solta, não. São quantias demasiadas representadas em poucas cores na tela. São tantas mais que milhões de pães roubados… Do mundo. Do mundo que me pariu… Do mundo que pariu tantas calçadas feitas de migalhas contadas.
Quem abriu mão de papéis coloridos na carteira agora é (des)visto pelos ricos de carteiras cheias.
Prepotente… Fora de mim, sem arte nem cor, não vou mencionar para autoridade autorizada a me enganar. Sou mais um de um Van Gogh de orelhas decepadas prestes a correr do precipício ao manicômio. Pedir lápis e riscar paredes estruturais…
Eles obrigam a abrir os olhos ao mundo…
E eu em pés descalços, rodo em quatro paredes as nuvens.
No topo das nuvens as orelhas se movem intactas.