Eu seria feliz…

Fechei a janela quando resolvi contar sobre tudo aquilo que é feliz quando estou aqui ou lá, das escolhas mais fáceis, das manhãs, daquelas tardes…

Num fim de manhã de julho em chuvisco eu cheguei em casa deixando os papéis sobre a mesa  –  o lugar onde tudo fica largado como seguro  -, tirando casaco, desenrolando o cachecol do pescoço, empurrando a bota para fora do pé. Tudo parecia certo e toda eu parecia feliz na euforia dos encontros da rua, nas complicações resolvidas, nas conversas sobre o tempo e as próximas eleições. Exatamente ali entre buracos burocráticos a serem tapados no banco, no cartório, no supermercado, no advogado e no… no… nos compromissos mecânicos do dia a dia.

O ponteiro prestes a se transformar nas exatas 12 horas — meio dia, a comida quase — uma manhã que passou rápido. Belisquei meio punhado de amendoim torrado nas primeiras horas do sol que apareceu desaparecido em nuvens densas. Foi quase a tomar nas mãos um chimarrão verde com gosto de chá doce misturado na erva que perdi os olhos na mesa, nas margens do meu lapso a atenção interrogativa chamava para provar o feijão, para pedir se o boleto tinha entrado, para pegar a xícara e encher com o resto de café do bule. E aquele instante atordoado que começava martelar como uma verdade que esta ali na superfície mas não se quer ver.

De olhos esparramados no vidro da mesa da cozinha, da casa, de julho, num dia que chovia fino, que no meu ouvido a palavra sem forma dizia: seria feliz mas não seria.

É eu seria feliz morando numa cidade no interior do Brasil, num lugar onde todos me chamam pelo nome e dizem boa tarde. Eu seria feliz…

Eu seria feliz acordando sempre as 7:30 e indo deitar as 23:30. Sem acordar com o sono extraviado na madrugada para olhar as horas. Sem espreitar da janela nem brincar com os latidos vindos do outro lado da rua.

Sim eu seria feliz dando bom dia já cedo, indo abrir o portão de vidro, a porta de entrada, empurrando a cortina e deixando a manhã espreitar pela janela da cozinha. Seria feliz mas não seria.

Eu seria feliz no trabalho repetido em oito horas diárias e ganhando o valor fixo em data certa ao fim do mês. Seria feliz tendo o dinheiro no bolso e no banco poupança, sobrando para comprar mais de cem livros por ano e ir ao cinema toda a semana.

Eu seria feliz com desenho de casa e a escolha da paleta de cores, um pátio grande para plantar um ipê amarelo, decoração artesanal feita nas mãos com tinta e moldura. Trocando a estante por outra onde coubessem todos os livros comprados no ano anterior e ainda não lidos porque o tempo não sobrou. Fazendo jantar para visitas no final de semana com cardápio 100% vegetariano e abrir um vinho todo sábado à noite…

Seria feliz fazendo brincos e pães e dando mudas de plantas semeadas anos atrás…

É, pode ser… Seria feliz com casamento marcado, lua de mel na praia, uma vez por ano viagem com passagem de volta comprada, um quarto preparado para esperar um filho futuro.

Eu seria feliz vivendo um amor só, mas…

Seria bem feliz vendo crianças nascendo, buscando os sobrinhos na natação, fazendo a decoração dos aniversários, as festas na escola e um bolo de chocolate sem coco ralado. Eu seria feliz vendo as crianças crescendo enquanto ditam o alfabeto sentadas no sanitário da casa da vó.

Eu seria feliz, no outro lado do mar, na companhia de pai, sendo abraçada com feliz aniversário no dia 31 já cedo, pela manhã. Reunindo toda família na noite de Natal e os amigos no início do próximo ano.

Eu seria feliz não tendo tempo de ler mais de um livro por mês. E poderia achar feliz pendurar nas paredes brancas os títulos concedidos por estranhos depois de tanto desespero, frustração e drama.

Seria feliz se não tivesse que dizer adeus, se não precisasse passar nas casas me despedindo, dizendo que volto no ano que vem, que o tempo passou rápido, que é difícil mas é a vida (não é?). É a vida?

Seria feliz se não aspirasse abraçar o mundo e andar por todos os lugares abrindo risos em bocas alheias, se não quisesse me lançar por outros idiomas que desconheço, se não quisesse tocar o desconhecido…

Eu seria feliz se não houvessem os minutos em que puxo sozinha a mala, em que olho para trás, abano os dedos tortos e faço um coração no desenho das mãos. Eu seria feliz se não sentisse a bola que pesa na garganta, se não chorasse em soluços, no banheiro do aeroporto num domingo nublado enquanto espero pelo voo. Se não houvesse uma mala para arrumar, desarrumar e voltar a arrumar e a desarrumar… Eu seria feliz sem dizer adeus.

Seria feliz sem dizer adeus…

Eu seria feliz se os medos embalassem me acomodando num cotidiano aceito em felicidades alheias, em que eu as tomasse como minhas e as reproduzisse – feliz – porque é assim que o mundo faz. Mas esse medo é tão dono de si que me empurra para longe, me nega o direito de me tomar como outra, que não seja eu, como eu. Como se não fosse também os sintomas do meu corpo que cobrasse a minha presença essencial. Escrita…

Porque eu seria feliz se parasse, agora, nesta linha, de escrever e deixasse para lá essa bobagem de viver o sonho – delírio -, o próprio mundo, pura e cristalina verdade (de ser)…

Sim, eu seria feliz se não entendesse o que é a existência (tão ou quase) rara que acabei por conhecer.

É verdade, assim eu seria feliz, mas não seria eu.

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