A ideia não é resenhar livros e dar explicações de como ler uma obra.
O que eu gostaria é simplesmente contar sobre livros… Sobre livros que quando eu abro lançam para o ar um cenário cristalino em que posso estar e viver.
A verdade é que a ideia de falar de livros não é nova. Mas acabou por ganhar forma em página de word apenas quando, na semana passada, li um livro incrível que deu vontade de escrever sobre.
E neste momento eu quero ser este livro, quero ser uma polaroid, uma revista recortada e colada e depois pendurada num estúdio transformado em casa, e ser letra de música e guitarra desafinada, ser roupa rasgada e um livro surrupiado…
Deixa eu explicar…
No início de 2018 entrei numa livraria com a intenção de comprar um livro determinado. Folhei, pensei, andei entre as estantes e deixei o tal livro de lado. Acabei saindo com outro, por puro acaso.
Era Linha M (M Train), da Patti Smith. Li acompanhada de xícaras e xícaras de café que ajudaram amenizar o inverno frio e chuvoso do ano passado. Gostei imenso do livro.
Mas então, dias atrás, estava na rua da biblioteca pública quando despretensiosamente resolvi entrar (“só pra dar uma olhada”). Fiquei um tempo na seção de literatura árabe, passei os olhos na literatura italiana e inglesa. E apenas por curiosidade fui procurar o outro livro da Patti Smith. Foi engraçado porque eu estava tentando lembrar qual era mesmo o livro que eu queria ver se estava no acervo da biblioteca. Eu lembrava e esquecia, lembrava e esquecia. Quando consegui pegar o nome na minha mente não deixei escapar outra vez e fui atrás dele.
Estava lá, última estante.
De momento o título na versão portuguesa me causou estranheza – Apenas miúdos. Mas acabei por levar pra casa o Só garotos (no Brasil), ou Apenas Miúdos (em Portugal), ou Just kids (no original).
A escrita da Patti Smith não me era desconhecida, no entanto eu não sabia ao certo do que se tratava o Just Kids. (mania de querer ler determinados livros sem saber exatamente o porquê)
E a verdade é que os dias que o dediquei foram de uma aventura mágica que me levou a grandes nomes da música, da arte escrita e desenhada. Mais do que isso o livro recobrou-me sensações e buscas que prevalecem naqueles que ainda alimentam o quase sobrenatural anseio de fazer arte, de inventar a arte, de sobreviver na arte, de se transformar em arte.
O livro assinalou a tal coragem e o tal desprendimento de arriscar verdadeiramente tudo aquilo que não temos para então viver o que plenamente somos…
Em Just Kids, Patti narra os dias de frio e de fome que viveu justo com o amigo Robert Mapplethorpe quando eles eram apenas garotos criando uma identidade própria na borbulhante Nova York dos artistas, do rock, da literatura, da fotografia. É também um retrato de jovens que viviam rondados pelas inconstâncias econômicas e sociais, pelas ideias sopradas pelas drogas, pela descoberta da própria identidade sexual e artística.
Mas mais do que isso, Just Kids é um relato intenso sobra a amizade que permite descobrir-se sem receios e de se recriar sem deixar de ser. Patti Smith e Robert Mapplethorpe criaram algo incrível, que se tornou possível na promessa que fizeram: “O Robert e eu mantivemos a nossa promessa. Nenhum de nós deixaria o outro.” (p.193)
Quando leio livros como este acabo por riscar um fósforo qualquer que aquece e ilumina anseios ainda incompreensíveis do que será. O caminho de quem escolhe verdadeiramente a arte é arteiro, surreal, dolorido. Mas parece não haver outro caminho que seja realmente genuíno, é este que permite o encontro com a própria arte, única, singular, autônoma.
SMITH, Patti. Apenas miúdos. Trad. Jorge Pereirinha Pires. Lisboa: Quetzal Editores, 2011.