Mas eu escrevo…

Eu queria escrever sobre um instante em que o único esforço que se deve fazer é o de se deixar levar ao prazer de entrar em uma gelateria e pedir quais são as opções veganas e entre elas então escolher “pistacchio e cioccolato fondente nel cono, per favore”, também este vegano…

O único esforço é o de entrar naquela gelateria com opções veganas e daí reaprender outra vez ou uma vez mais onde está a poesia…

A mulher sorridente que me entrega o gelato pergunta de onde venho eu respondo onde estou agora, emendo dizendo o país de uma tal registro, um lugar onde nasceu meu corpo, onde dei os primeiros passos e inventei os primeiros versos e linhas. Coloco a parte tudo o que penso sobre nacionalidade, territórios, espaços conflituosos de um somos. O rapaz ao lado dela se precipita em dizer que jamais diria, que pareço mais uma escritora inglesa…

Aproveito e deixo de lado o discurso das nacionalidades e pela primeira vez tomo coragem para dizer “inglese no, ma per caso, scrittrice sono…” É a primeira vez, numa língua que não é aquela com a qual escrevo, que digo sou escritora.

É a partir daí que a conversa real começa, dura minutos, dura o infinito de uma vida inteira… A mulher que antes me interrogava de onde vinha, agora me perguntava o que eu escrevia. Poesia, crônicas, contos, textos… E então era ela que me contava a sua origem, iraniana. Eu falava sobre o cinema iraniano, a beleza do cinema iraniano… Ela ia citando nomes sorrindo. Num pedaço de papel, escreveu-me o nome de uma poeta que está presa e que segue escrevendo poesia, o livro foi agora traduzido para o italiano, está disponível no site da casa editrice, que ela também anota para mim.

No outro lado do papel, ainda relembrando e revivendo suas memórias, escreve o nome de uma outra poeta, esta, em meados de 1800, foi morta por escrever, por ser mulher, por ser livre em seus versos e palavras.

Enquanto eu mencionava outra escritora iraniana, contando o enredo do livro, vi seus olhos brotarem em lágrimas que correram sem nenhum tipo de pudor ou vergonha. Aquelas lágrimas eram eu, que nasciam e deslizavam em um rosto que continuava sorrindo.

Meu gelato começava a derreter na mão, segui, prometendo voltar. Ali próximo, sentei-me em um banco, numa praça de pombas e gente que aproveitava o sol. Distraída do gelato che era buonissimo, eu fazia manobras para abrir o papel e ler o nome de uma mulher que escreve poesia.

E eu poderia agora escrever muito, tentando não contradizer o discurso entre literatura e nacionalidade, com uma suposta profundidade de pensamento desde o que é a poesia, até um inflamado tratado sobre origem, território, nacionalidade. No entanto, as nuances que saltam meu pensar sentir ecoam numa liberdade de ser, que vai saltando genes, territórios, raízes. Eu moro em um pensamento livro livre (eu deixo a palavra escrita querendo ser outra, pensando escrever livre escrevo livro), eu vivo num verso de poesia que escapa como a pena do pássaro de ossos ocos que sou eu migrando, migrando a mudança das estações. Eu durmo enrolada à força infinita que existe na fragilidade de escrever… Mas não se trata de mim nem da possibilidade que sou e tenho de poder andar além de um lugar registro. 

Ainda assim, de um dia antes, sem data e sem final, eu passo ao lado de nações ou bandeiras que não  esvoaçam a face, rostos de gente, rostos humanos e endereços além destes. Meu trecho é um endereço não encontrado, um todo lugar ao aberto, um sem lugar, as portas abertas de uma gelateria: Nacionalidades posso ser todas e sou nenhuma.

Mas eu escrevo, esta é a minha origem, este é o meu fim.


24/25.03.24