Em direção a Botafogo, Edith Piaf…

Apanhei o taxi na Avenida do Jardim Botânico em direção a Botafogo. Mal havia me sentado e já percebia aquela voz que há tanto não sentia.

Na maior espontaneidade disse que adorava a música que estava tocando. A taxista e eu, quase ao mesmo tempo, pronunciamos... Edith Piaf...

Sim, Edith Piaf. Exatamente, eu falei sorrindo...

Perguntou-me então se eu gostava, disse que, às vezes, se perguntava se não era cafona ouvir aquelas músicas. Aumentou o volume.

Ali ficamos sem nada dizer. A música criando um universo de portas e volantes e lá fora árvores imensas inventando calçadas. Eu olhava pela janela. Era domingo, aquela agitação, tantos carros ali parados, também eles, ao sinal vermelho. E diante de todos aqueles carros dividindo um lugar... O céu azul beirava aquelas árvores sobreviventes, as motos, as bicicletas que agora encontro nos rastros da minha imaginação da cidade. Os morros esculpidos. Por um instante tudo parecia estar orquestrado, o compasso, a sinfonia, o eco, a acústica. Um instante beirando a perfeição e eu, diante da janela, ouvindo Edith Piaf, escrevia. Houve um mundo onde eu respirava. Aquele instante parado no semáforo, na janela, era uma vida inteira.

E aquele átimo de uma existência em movimento já parecia tanto... Até que o sinal abriu, adentramos ruas estreitas. A taxista voltou a palavra para mim, outra vez. Os olhos marejados e a voz que pareceu embargada contou-me que ela era uma ex-tuberculosa e que Edith Piaf era uma espécie de força que a compreendia, companhia, um modo de superação da própria dor... Ela ainda a ouvia...

Falamos da saúde frágil daquela mulher, sobre sua biografia, a vida para além da artista. Falamos sobre a arte ser, muitas vezes, salvação, e alterar nossas incapacidades diante de coisas do mundo. E como a música altera coisas em nós, as fragilidades, as dores. Foi o que a taxista disse. Falei sobre escrever...

Ela disse que percebeu tristeza quando entrei no carro. Era verdade... Talvez essa estranheza de mundo, esse sentimento que não sei se aperta, se aparece de súbito. Mas é assim... Essa coisa indescritível, indizível também ela...

Então, de repente, a música parou, ela tirou o CD (sim, era um CD que estava tocando, nada de aplicativo de música, CD) e pegou no porta-luvas a caixinha, o pôs ali. Inclinou-se para o banco de trás e entregou-me.

“Era para eu dar para você. Para escutar Edith Piaf...”

Não acreditei. Tentei dizer que não era preciso... Mas, sobre a mesa de uma casa improvisada por dias, está agora o CD de Edith Piaf. Não perguntei o nome a taxista, não era preciso. Agradeci.

E agora também não será preciso, enquanto continuo andando no carro e parando no semáforo, tentar descrever aquele instante, a troca, o encontro, a arte... Da vida...

Enquanto escrevo esta suposta crônica às entradas do buio da noite, quando as máquinas e furadeiras parecem já terem terminado seu turno numa cidade por onde quase não sei andar e mesmo assim ando. Ando sem contar os quilômetros, sem levar as horas nem as notas, sem fazer fotografias...

Talvez esta seja a última crônica escrita nas letras de um teclado, por um tempo pelo menos. Talvez daqui, agora, leve muito tempo até que... Até que o caderno, companheiro de viagem, seja encontrado. Talvez eu esteja ainda na primeira página de um livro, Caderno Proibido. E já seja o país destino, o idioma da escrita.

O que comigo parte é um caderno e caneta, confissões. Às vezes ainda a sensação de descompasso, mas a insistência da teima, a vontade voraz de viver e não saber como. Ser como sendo. Uma lágrima sensível, frágil até nos ossos. E a voz embargada, o riso contido, o silêncio, sobretudo talvez o silêncio ao infinito.

E no buio da noite, nas margens de um horizonte janela, de mares verdes da floresta eu não ouço Edith Piaf e, no entanto, escuto. É uma crônica de um domingo, pela cidade, um sorvete, o alto dos montes, os carros, as esperas em cafés, os jantares, os pratos. Um instante em que, em direção a Botafogo, eu ouvia, indiferente e excentricamente cafona, Edith Piaf.




26.06.23