“Aqui onde eu me pergunto onde é aqui…”

"Aqui onde eu me pergunto onde é aqui..."
Um objeto onde o ser não cabe, abre… Os olhos banhados no fundo fio da garrafa, o
mundo mar do quarto escuro.
Aqui onde as horas passam em outro relógio dentro do relógio e o tempo está
regendo os ossos que se entortam nas portas abertas do carro.
Aqui… Onde os pés se arrastam arrastando a poeira vermelha, as histórias, as
mágoas, as dores de ombros, um nome de neto.
Aqui… Onde se espera o fim do mês, a chegada, as horas, o almoço, o último instante,
o apego, uma notícia.
Aqui… Onde a grama falha, a casa se desmancha, o cão morre e os sabiás são cada
vez mais gordos e cantantes.
Aqui onde já foi o repouso diário das corujas noturnas, onde já chegaram tucanos,
picapaus e beija-flores.
Aqui… onde os fios telefônicos estão soltos, onde se observa, onde ainda se erguem
concretos condenados ao abandono.
Aqui onde flores nascem na sombra e joões-de-barro fazem casas, mas eu não faço.
Aqui onde lembro onde estive, onde fui ou para onde vou mesmo não sabendo.
Aqui onde existiu no espaço tempo de um agora manhã de domingo e seu silêncio,
sua face cinza calma, sua umidade fazendo bordas a um inverno por chegar.
Aqui onde fui boneca brincando na terra, onde chego sem nunca mais voltar.
Aqui onde me lanço num labirinto espaço/objeto em que me desencontro. E de susto,
num subtítulo de suspiro ou sopro, para no outro lado do mar encontrar… A boneca
que num aqui só dela, sentada à janela esperou o trânsito de buscá-la para entregar.
Aqui lá, as mãos sujas da terra e dos fogões, o telefone que começa a tocar.
Aqui onde uma boneca é lembrar de uma vida não objeto.
Lá, em frente ao espelho, entre fotografias de filhas que cresceram a boneca é o sopro
de um alguém sem lugar.

27.04.23


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