Entre Eva, de Nara Vidal e Uma paixão simples, de Annie Ernaux

“O que me atrai muito para a escrita é o fato de ser uma forma de prestar atenção ao mundo. Um instrumento para sintonizar o máximo de realidades possíveis.” (Susan Sontag)


Nas linhas do trailer de um documentário sobre Susan Sontag encontrei o laço para começar este texto que, há algumas semanas, ronda a minha cabeça. É sobre livros, ou sobre como a leitura da última página de um livro me fez notar um outro, lido em algum mês perdido do ano que passou.

Annie Ernaux era uma intenção de leitura muito antes de se tornar prêmio Nobel, mas a primeira obra que dela li foi exatamente algumas semanas antes de tal anúncio. Os anos, um livro pego, como de costume, ao acaso, nos empréstimos da Biblioteca Municipal. Depois disso, uma aula de filosofia levou-me até O jovem. Depois Uma paixão simples e Um lugar ao sol seguido de Uma Mulher, foram gentilmente me oferecidos como presente, quando não sabia entre os dois qual escolher.

Comecei então a ler Uma paixão simples, não acho que estive intrigada para o início da leitura, entretanto a sequência das páginas que se arranharam naquela espécie se determinação inconsciente sobre um alguém (amante) que, de alguma maneira, não me parecia propriamente obsessiva e irracional - como geralmente consideramos (superficialmente) a questão. Talvez (quase sempre é um talvez) uma vontade desprendida da necessidade de fazer-se, social e moralmente, contida.

As linhas ali escritas - não encontro as palavras certas para expressar - põe-me à antevisão de uma simplicidade não simples de dizer os fatos que não eram propriamente fatos, mas um estado de estar, naquele momento, numa experiência substancial de vida. Um estado tão naturalmente humano - na medida que nos ‘assoa’ (ou nos espirra - são nestes termos que quero dizer) uma atitude errada, ou precária, ou ainda imoral, ou ainda animalizada pelos supostos instintos e vontades não suprimidos, oprimidos, sufocados aos berros dos vieses de um uma social realidade irrealista e maquiada de complexidades, evoluída.

Mas a leitura em si, nesta descrição indescritível da vida, não impõe nem mesmo a complexidade de um comentário sobre este ultrapassar o estado de estar. Simplesmente a vida em seus atos teatralmente imprecisos, largados aos próprios acontecimentos.    

Escrevendo, então acabo - apenas nas bordas - conseguindo perceber em Annie Ernaux uma suposta (suposta pois sou eu que estou dizendo) naturalidade de escrever como quem está libertamente dizendo o que se passa em seus dias, como voz sutileza sem precedentes àquilo que normalmente nos faz moldura (i)maleável. Não entro nos contornos de pudores, dores e coisas do gênero. Deixo-me revelar sobre ânsias indizíveis que, em sua leitura, simplesmente acontecem e são vividas para além dos crivos de julganças ou desfechos.

“(...) Não quero explicar a minha paixão - isso acabaria por considerá-la erro ou desordem a justificar -, quero, simplesmente, expô-la.” (Uma paixão simples - p.26)

Em seguida comecei a ler Um lugar ao sol seguido de Uma Mulher. Entretanto continuei voltando à sensação das últimas páginas de Uma paixão simples, pois ‘curiosamente’ quando as lia me tomei pensando em Eva, de Nara Vidal. O livro que, como mencionei, li no ano passado.

Deveria eu dizer sobre Nara e a obra Eva, nossa meia hora de conversa nos degraus da Biblioteca Joanina, os comentários sobre o livro, a necessidade de determinação de gênero, de localização de um alguém real. Por hora, talvez, isso seria arranjar uma explicação a qual, a obra por si mesma supera e desmonta. 

Abro um comentário para não confundir a aproximação entre Nara e Annie… “Ela ganhou o Nobel”; “Ela ganhou o Oceano”. Pois bem, o que tenho a dizer sobre isso, foi o que já disse, “Mas isso não desfaz a qualidade de sua escrita”. Não quero parecer irônica nem arrogante, entretanto… Entretanto, diante de (e deixo a frase pela metade ou para a imaginação de quem possa ler)... Estou para (re)conhecer escritas (não literaturas), pelos caminhos que delas, nelas mesmas (me) percorrem. A força de Eva, existe em si mesma, um indício disso está neste retorno inesperado a ela, depois de meses, por meio de linhas outras…

Em relação ao encontro das obras, não há propriamente aproximação de enredo entre as histórias. O de Annie, trata de uma paixão vivida com um homem casado, o de Nara, sobre relação familiar, questões com a figura da mãe. Mas isso se tomarmos as leituras pelas superfícies. Acho que o que me levou de Ernaux a Vidal é justamente este desterro de fazer daquilo que nos agarra e nos rasga de maneira tão natural, parte verdadeira e substancial dos nossos subúrbios humanos, nos quais vivemos, ou poderíamos viver sem demasiado drama ou vergonha, mas simplesmente... Invertendo-os das carapuças e máscaras à demandas legítimas de um ser em experiência com a vida, em seus caminhos, ou naquilo que nos atrela a vida.

“(...) graças a ele, aproximei-me do limite que me separa da alteridade, a ponto de imaginar, por vezes, ter passado para o outro lado.
Medi o tempo de outra maneira, com o corpo todo.
Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo.” (Uma paixão simples - p. 58)


Março de 2023.