fotoGrafia

grafia
(grego grafé, -ês, escrita + -ia)
elemento de composição
Exprime a noção de escrita (ex.: ortografia), de  registro (ex.: tomografia) ou de estudo (ex.: etnografia).

fo·to·gra·fi·a
(foto- + -grafia)
substantivo feminino
1. Arte ou processo de fixar a imagem de qualquer  objeto ou realidade através de sensor digital ou superfície fotossensível (película ou chapa) com o auxílio da luz.
2. Imagem obtida por esse processo. = FOTO
3. Oficina fotográfica.

in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/ [consultado em 05-07-2022].


As palavras vão se juntando pelo caminho e quando então abro a página em branco eu quase nunca começo do princípio. Como se já estivesse lá, pelos meios ou pelas metades, o ato iniciado, eu adentrando o trem em movimento no último instante da partida, no trecho, no meio do filme, do acontecimento, chegar à mesa com cinco anos de atraso… 


Digo assim, porque foi assim que pela manhã me peguei pensando ou escrevendo sobre fotografia, ou sobre fotoGrafia. Olhei para os lados do meu tempo sem tempo e sem lados, o tempo para além dos cortes passado futuro presente, para além do lógico ou do óbvio.

E há quanto fotoGrafo? Talvez seja desde sempre, ou quase, que olho lentamente para o mundo que passa ou se passa ao meu redor, em mim, para além de mim… E as janelas, o afeto trocado, as mãos dadas e soltas, as mãos que desenham no ar as letras musicais e os gestos quando gesticulam o ar, quando fazem dançar o vento. Os pássaros, as nuvens, o pó, um riso e outros olhos, os varais, os restos, os gatos, as penas no ar.

Mas, característica da época, a proliferação exagerada de imagens a mim nada interessa. Desta propagação repetida e enfadonha, eu continuo no mesmo registro de há muito: é sobre uma fotoGrafia que me porta a qualquer coisa outra, que mergulha movimento em ato estático, que entoa algo que escapa ou me escapa. Misteriosamente. Sem dizer porquê nem apresentar razão. Definitivamente o óbvio não me serve.

Afinal, a fotoGrafia ensina-me. Um tanto (ou todo) é sobre mim ou sobre observar - ou sobre observar-me pelo observado - é sobre a sensibilidade do olhar ou a poética. É sobre compreender que buscar a fotografia, muitas vezes, é permitir que ela não exista para além da intenção de um querer que seja. É sobre para onde ou como olhar. E há quando, simplesmente, é se deixar levar ou se deixar olhar... É permitir que ela se aproxime quando assim o desejar. A fotografia me ensina que muitas vezes fotografar é não fotografar, mas aguardar ao silêncio, sentindo a respiração do tempo.

E sabe… Sob um estalo a lição é do tempo. E eu aprendo - ou tento - sobre o que não cabe no estalo do controle do tempo.

De onde vem isto?

Estava subindo a rua, olhando para o céu, voando o voo das andorinhas num fundo de neblina branca e molhada, ainda não havia a pressa dos carros nem passos dados pelos horários. E ali, ao acaso de quem olha, parei por um galho dourado ou, diriam, um galho seco. E nestes últimos tempos tenho pensado tanto sobre quão belas são as flores secas ou aquilo que algum dia alguém me disse sobre as glicínias, “...são muito bonitas, mas são efêmeras…” (e desde então eu ando pensando e passando o dedo, espiralando enfermidades em pensamento, como o ninho que há tantos meses acompanho e me acompanha sem que ainda o saiba dizer. Mas isso fica para depois…) 

De volta ao galho dourado ou seco, agarrado e suspenso ao ar de quem passa, eu parei e toquei a cor dourada das folhas tão mínimas e tão sinceras, elas. E aquele galho seco, que eu tinha ao toque sutil e efêmero dos meus dedos, eu quis fotografar. Poderia ter feito com o telefone, mas não, não poderia… E não fotografei.

Segui pela direção, parei como todos os dias paro para ver o ninho que continua lá. Ouvi vozes e as flores efêmeras que chegam em atraso entre galhos puramente verdes que acarinham meu braço quando passo.

Entre fotoGrafias recortadas e pensadas desci os degraus onde ontem sentei-me para fazer companhia ao pássaro negro, saltitante do muro ao tronco. E foi nos degraus e depois saltando grãos de areia no ar que percebi que assim como já não posso mover-me sem carregar comigo o caderninho e a caneta, talvez eu devesse carregar a câmera, ou melhor as câmeras, comigo com mais frequência. Digo as câmeras porque, às vezes, é a fotografia digital que se pede, girando a lente, alterando ISO, fotometria, o balanço de branco. Noutras é estalo intenção, ato de fé na película expirada, o tempo de um talvez projetado em alguém ou algo que com a luz se prenderá (ou não) no rolo 35 mm - por hora p&b. 

Há momentos em que encontro cenas e penso, “tenho que voltar cá com a câmera”, mas no retorno a fotografia já não está lá, já não é… E eu reaprendo outra vez sobre o tempo e o que passa a ser revelação, o apagamento, o esquecimento, o desencontro e o reencontro, o inesperado e o acaso. E a fotografia pura-mente como intenção, ou aquilo que fica no tempo, que pede tempo para retornar, para ser. O tempo que pede tempo para se tornar. Como a sombra das flores que registrei no muro e não fotografei. Porque o caminho escreve histórias e às vezes essas histórias cabem em fotografias, às vezes não. Como ser sem existir…

E é tamanha a intensidade que trago - quase inconscientemente -, que expressão ou expressar seja qualquer coisa que se funda em mim. E já que assim o é, não posso e não consigo - não quero e não vou - me adaptar à regra nem a técnica, as normas, as palavras chaves e os critérios. Aprendo a fluir através daquilo que flui em mim, é assim.

E bem, eu escrevo. Ou talvez eu sou escrita. E nos últimos tempos, parece… Escrevo fotografia. Vou sendo movida sem explicações - as coisas simplesmente acontecem.

Afinal, foi quase por teimosia.
Comecei a fotografar com uma câmera analógica, das mais simples (que por acaso consegui quebrar, mas tenho esperança que continue funcionando), lançada nos anos 80, rolo 35 mm. Basicamente é girar, shot e depois, ao fim do rolo, girá-lo para o outro lado e revelar. Mas dali, de repente, um dia cheguei em casa e havia uma câmera kodak, de pilhas e flash e um rolo p&b - um clássico - esperando por mim (obrigada Lu - sim eu ganhei e sim tenho sorte). E da lista de espera consegui um lugar no curso para iniciantes. E comecei a ler sobre como relevar fotografia em casa (com café e outros materiais). E chegou um livro sobre fotografia. E aproximaram-se amigas e amigos que são grandes fotógrafos e que me inspiram. E então assumi o risco de fotografar um evento. E depois outro e outro. E da loja de material usado eu arrisquei a compra da minha primeira câmera e da primeira lente e junto vieram filtros que eu esqueci que deveria tirar antes de fazer fotos em ambiente fechado.E agora há fotografias de cabelo ao vento, réstias de luz. E há este meu riso perdido e silencioso cada vez que repasso as fotos e encontro um gesto de afeto, um riso solto, uma expressão despercebida de mim, um gesto cristalino de amor, quando há um instante que escreve um trecho de história que será para sempre em mim.

Dali a fotoGrafia escapa e vira poesia e quem me escreve é a foto e a poesia. É que eu vivo de palavras, de livros. E estes livros e palavras estão nas ruas, nos olhos, nos gestos dessa gente nas quais eu gosto de me encontrar - uma criança no colo segurando a Minnie enquanto esperam o ônibus, um riso alto, mais alto, um grito de olá, alguém chegando, o vestido florido e as mãos ajeitando as maçãs na banca do mercadinho, alguém brilhando e tentando olhar… E tudo isso é habitante e é habitado com o meu pensar, silenciosamente. Estes instantes - fotográficos - quando me encontram…

E se outra vez a fotografia me ensina sobre a escrita do tempo, ou a escrita no tempo, então fotoGrafia é também sobre esperar ou saber que às vezes eu sou o resultado do tempo necessário para relevar. Noutras, em mim, é ela só uma ideia ou uma intenção que não se concretiza, mas que vale por si mesma ao revelar-se existência enquanto vontade intencionada do meu pensamento. A história que eu crio e faço a partir daí.

E agora eu estou me olhando olhando com os olhos nos recipientes químicos da revelação. Está lá, no segundo semestre de jornalismo, antes de abandonar. Porque aquele instante de ver a formação da imagem o tempo já escreveu. Aquele momento existe, talvez para o tempo da fotoGrafia de hoje… O tempo se propaga para além de mim e a fotografia ensina sobre o tempo. 

Lançando aos ares o início da aventura fotográfica, revelo duas fotos antigas, quando tive a sorte de ser encontrada por elas. São exatamente daquelas imagens que grafam em mim qualquer coisa no tempo do tempo e eu continuo voltando para elas e elas continuam dizendo e não se revelando de todo. Uma réstia, um trecho a ser escavado.

A primeira, em cores, foi feita durante uma viagem para Dublin, na Casa Museu James Joyce. É uma fotoGrafia reflexo, imagem refletida no vidro como espelho, brincadeira de luz solar, o astro em movimento movendo a imagem de um universo refletido movente, ou a interposição natural de imagem sobre imagem.



A segunda vale prefaciar…
Foi um dos últimos exercícios que a Karina pediu no curso. Enviar uma fotografia que considerássemos particularmente importante, que significasse algo para nós. Subitamente vi-me pululada por esta foto. Entretanto, tentei argumentar com o meu pensamento para entregar algo mais recente que empregasse técnicas ou que tivesse melhor qualidade e resolução. Acabei rendida. Enviei exatamente aquela que representa algo sobre a minha relação com a fotografia. Eu quase me lembro como ela aconteceu… Estar ali, ao acaso, e de repente, assim sem pensar, lançar o dedo num clique e lá está…



Foi feita em 2018 durante uma viagem pela Itália, é no Vaticano. Na altura, assim como a primeira, o clique aconteceu através da câmera de um telefone ultrapassado. Eu não tinha conhecimento algum sobre técnica e recursos fotográficos. Entretanto, mesmo agora que sei um pouquinho mais… Noto que não me interessa fazer muitas alterações, de modo que nela alterei apenas a cor para p&b, sutilmente mexi no enquadramento e diminui o ruído. A fotografia existe por ela mesma. E estas fotoGrafias continuam propagando-se, anos depois...

E veja para onde levou esse galho dourado…

A verdade é que as fotografias que me apresentam não são as boas ou belas (assim consideradas). E por acaso, na fila do almoço eu li algo que me remeteu exatamente a isto. É Truffaut quem diz, a propósito do lançamento de As Noites de Cabíria e os cortes que seriam necessários ou bem vindos ao modo como Fellini realizava. Truffaut diz “Sou apologista da defesa ou da crítica dos filmes em bloco; o espírito, o tom, o estilo, a respiração importam mais do que o recenseamento mesquinho das cenas boas ou más(…)” (Os filmes da minha vida, François Truffaut, p. 257).

De volta ao mundo fotográfico sou apanhada pelo instante exposto à luz escrevendo histórias. O ímpeto impreciso e misterioso, indizível, que me torna mais curiosa, me emociona, me faz rir e chorar, me transporta para esta intensidade que revela a intensa expressão que se transborda em mim ou para além de mim. Às vezes, são ou estão desfocadas, tremidas, com a luz estourada ou escuras demais. Mas o sopro está lá, está lá uma mão de canto gestando um ato de palco, está um riso mais que aberto quebrando a dinâmica da fotografia esperada, estão lá os olhos distraídos que se distraindo encontram o fundo da lente. Está lá a poesia, a poética existencial.

Mas vamos com calma, porque há muito ainda da fotoGrafia e será ao seu tempo. Deixo-me levar pelo tempo dela…


Ao som...
“(…) Si alguna vez me cruzas por la calle
Regálame tu beso y no te aflijas
Si ves que estoy pensando en otra cosa (…)”
05.07.22
06.07.22
10.07.22