Desvio ou desencontro

“Se você quer amar não pode ser indiferente.” (Papa Francisco)


Na rua para casa o anúncio: desvio.

No miado insistente, na casa, os degraus do corredor, um teto invertido. Sento-me com os degraus compartilhando a confidência das palavras ou talvez o silêncio nublado de um domingo. Eco, é sutil o toque das letras… Talvez sejam teclas, talvez seja nome, talvez sejam só letras desenhadas e soltas. De soltar-se… Eu risco o papel sem direção ao traço. E mergulho no instante da ponta de um lápis que lança a projeção do instante e outra vez o tempo perde a noção do tempo e eu reconheço a linguagem que não conheço… Do tempo enquanto métrica partida, passado futuro tempo... Eu não reconheço a linguagem métrica da risca, vidamortedianoitevivomortorealidadesonhovelhonovodesencontroencontro.

…Um sopro frágil, de mãos intensamente estranhadas… Durmo nas nuvens, um pássaro em voo de cabelo solto nas penas brilhadas sob a luz do sol novo. Amo porque voltei a ser o que não deixei de ser nem deixei para ser… Um ser sem idade que se detém aos olhos das flores olhadas, sem forma e sem desenho, em cores ou invisível, palpavelmente frágil, sonoramente vento… 

A criança e as flores estão dispostas ao mundo de quem não se revela em vestes, de quem é a genuína veste ante as vestes das vestes.
A criança que não se teme e não teme o pulo de um coração que pula corda e, solta, toca a chuva nos pingos de um sonho que a inocência segura e a pureza embala porque o tempo não é passado futuro e talvez não é agora… Talvez seja nada, talvez seja tudo. Não é presa nem menos pressa e não se demora. Está entregue.
A criança foi deixada ao meio do campo de camomila, porque aquela pequeníssima flor se juntava, de uma mesma raiz, aos seus fios brancos de cabelo fino, já soltos num vento leve como o sereno do amanhecer. E as raízes se verteram em sopros soltos do ar da manhã em noite. Das noites estreladas embalos de um… Um instante, um desencontrado instante que faz rir em meio ao palco, calçada, ponte… Há quem rirá sem reconhecer multidões, há quem rirá junto de puro afeto e sensível amor. A criança deixada no campo de camomila… a criança era o desenho das flores pequeníssimas e acalmadas.

Mudo o degrau, paro entre frases. A rua, eu não sei, mas ainda talvez anuncie o desvio. Eu não penso sobre o que desviamos e o que desvia de nós, o que desvia de mim. A rua desvia, supostamente… Asfalto quebrado, buracos sinalizados. As telas de proteção demarcam o percurso seguro.

E eu não me seguro a nada.

E entre o desvio da quinta-feira e talvez os reflexos das noites anteriores... Os andantes acasos passos encorajam, uma vez mais, soltar o que fora ainda resquício de um princípio imposto caro demais a anima livre. Eu que tenho a anima solta, os pés descalços, as roupas rasgadas remendadas, que ajeito deixando o cabelo solto, tirando os óculos, soltando os botões.
Desvio daquilo que me desvia.
E o acaso então por vezes é mesmo só o acaso… E às vezes não. Mas eu não sei nada e não importa...

Sem sujeito, cresci para não ter idade, forma, conceito ou nome. Eu que sou nada, me expando, me largo, me deixo entregue e profundamente, sem mais ou menos, sem motivo para tanto… Amo (desse jeito descabido). Pulsando. Agora. Já. Isso existe. É agora. Foi antes. É para sempre.
Crescendo decrescentemente voltei pro barro, casa de papel, telhados de estrelas, mãos que se aproximam para inventar um bailado sobre a ponte acima dos carros. A inocência, que foi além da criança, olha para as flores que dão ênfase aos rios que subiram para as nuvens. E, como além nome, depôs as falas compradas caras, as durezas e as brutalidades arremessadas. Toma delas nos braços, embala com calma. Fecha os olhos e olha pro mundo, há tanto, espaço pra tudo. A inocência não responde, abra as asas, respira, cantarola. E o que expira é aquilo que corre nascido de um coração que se jorra…

E sobre aprender a ser dura, ela agora ri um pouco mais e toma água.
A inocência escolhe por pureza acreditar em gente. Acreditar em dias, noites, acreditar… Em quão milagroso é viver e que infinito pode ser um instante… Um riso, um olhar, reticências, silêncio, três pontos, encontro com alguém sem nome, ou apenas um nome, um passeio de cão que reconhece o que a razão desconhece, desconhecerá sempre enquanto crê razão.

Eu que acredito em quase tudo que me dizem e acredito em gente. Eu abraço as árvores, desvio o percurso do tempo para conversar. Eu peço licença ao trem que me senta e dele rompo as metas metades de semanas, porque me esperam os trilhos sensíveis que reconhecem nos olhos… Agora o trem começa a andar… E a conversa com o mar. Eu aceito-me, para além do que seja dito, pensado, considerado. Para além de tudo, de nada, de qualquer coisa…

Sei por não saber que os pássaros sabem sobre… Com eles aprendo assobiar um sonho. Somos inocentes, cantamos antes e sem maldade, pousamos os ossos ocos nos fios tensos da eletricidade.
Eu desaprendo, desaprendo sempre e fetalmente já não volto para o não lugar de crescer e ser gente. Gente grande, gente séria… Essa gente que não é pobre, é pobre gente - um julgamento descabido se não sei olhar singularmente. Mas se houver espaço, que saiba eu então dar a mão a minha pobreza de ser gente, de ser outro no lugar outro. Aceito e entrego-me.

Paro no desvio e olho para olhar.
Eu estou diante do desvio. Me cabe escolher o percurso, a caminhada, o seguir sem direção definida ou definitiva, mas o seguir…

Para e olha, entre minhas mãos, cabelo solto, pés tortos, meus olhos molhados moradores e cristalinos de um fundo mais fundo… Olha pra tudo isso que é uma imagem suposta sobre mim. 
Talvez nesta pronúncia da minha voz pronunciada, talvez ali haja alguma coisa do manso amansado de uma singela inocência que não se esconde e não aparece. Que rejeita a aparência aparecida no que é aparente, pois a aparência não a é, ela está adiante… 

Olho para os lados, brinco com as borboletas e com elas esqueço a rua, tropeço e rio de mim mesma. Eu danço, danço mesmo e sempre, eu danço sobre o asfalto.
E tudo isso que não é tudo isso ou talvez até seja…
Tudo isso… para não dizer que enquanto eu escutava o desvio do caminho e regava dos meus olhos as flores dos jardins que beiram portões e casas, docemente meus passos impassáveis de sentir em sopro, desviando, liam sobre a beleza do desencontro. Eles diziam a mim o quão belo e importante é desencontrar… por fluidez e ser perto. Acalentar o tempo para além do tempo, na paciência de ser do tempo do horizonte e a ele deixar-se confiar, como evangelho, com a fé que não duvida. Caminhamos sobre as águas. Apago a linha do intenso verão.

Eu desvio o que não desvio. Uma vassoura nas mãos enrugadas empurra os degraus ante a porta que talvez bata o vento de um verão exagerado.
Tomo a rua do desvio, não desvio desse focinho molhado que achou espaço entre as grades do portão. Nós paramos os dois. Focinho e mão.
E eu segui, entre carros, céus, portas ou portos…
De repente… sabendo que o desencontro é tão imprescindível quanto o encontro. É tão forte, necessário, tão possível e tão história, tão marcadamente eu na história. Talvez seja eu o desencontro, possível de ser apenas enquanto intenção de um encontro desencontrado.
Por vezes ou por hora, talvez o melhor que possa acontecer… E se em algum momento momento for, que seja o encontro ou o desencontro a se escolher sem a repetível palavra.

Sinto mais do que penso, penso muito e sinto muito. Não nego meu frágil fundo sem fim de sentir tudo, todo, todos. Eu não compreendo o que é ou seria ser eu primeiro. Sou entregue a todo instante já sem mundo. Quero desconhecer sinceramente aparências ou seduções, me desinteressam as vaidades. Eu guardo âmago, núcleo, traços e contradições.
E me esqueço… Estou crua, nua, pura, ou como sou.
Ali não rasgo essa inocência de um ser frágil, que sente o mundo e desvela-se intensamente a tudo, porque já não consegue não ser-se… Tão insustentavelmente que não precisa mais afirmar o dito. Vive, sente... a avassaladora intensidade de ser marcadamente sensível, frágil para sempre... 

Agora, em silêncio lendo em voz alta, repara sobre encontrar ou desencontrar... Deixar passar ou deixar que isso que foi denominado tempo se deixe passar ou deixe pra lá.
Talvez fique só como deixar assim, lembrança de gostar de pensar e querer sentir e já sentir, inventar a história e viver de um jeito outro que é assim ou sem assim…
Toco o todo sem matéria, molho o mundo, expando. As mil e uma noites depois das mil e uma noites e dias em noites e sem fim e o fio que não chega ao fim no tear… Continua segue. Eu nua tramando um traço intraçável inarrável do encontro ao desencontrar. Três pontos e o desencontro que tomo nas mãos em concha, bebo, dou de beber aos sonhos. A história se propaga, sou íntima. Eu que destoo, vou distante, abro o voo. 
E no desvio que caminham meus pés que não encontram os passos, ergo os olhos fechados para o céu. Neste frágil e insustentável instante rio de mim mesma, porque amo o desencontro como amo encontrar.

Estou solta e continuo solta. Amando tudo que passa e eu querendo tocar, delicado embalo sem agarrar, sem segurar. Eu penso nos pássaros e nas gaiolas todas infinitas que abro em mim. Tudo que acarinho e deixo solto, voa, vai…
Ver o mar… 
Acaso solto do mar…

Eu poderia não acreditar neste romantismo todo que está em mim, nem olhar para o lado, nem alterar as horas pelos olhos outros, nem entregar-me confiada assim… Mas eu não quero.
E eu sou tantas vezes aquela que quer ficar, criar o lastro. E sou a primeira a partir. Como se feita de partir… 

A rua anuncia o desvio.
E talvez tenha sido mesmo num dia de semana, em que um desencontro me encontrou com o que o pensamento anunciava... Quem, depois de muito encontrar-se, se conheceu pela primeira vez. Sensíveis e frágeis, feitos de choro e risos, talvez fumaça, talvez goles de um chá café, talvez olhos profundamente nos olhos, tenham, talvez, conversado no sofá ou se encontrado pela primeira vez.

De tudo que vai, segue e permanece… De tudo que talvez precipitadamente nominou-se encontro, de tudo que se fez humildemente desencontro… Um verso de poesia, o desvio no fim da tarde…



26.05.22
29.05.22
30.05.22