"Toda mudança é um milagre a contemplar; mas esse milagre está ocorrendo a cada instante." (Walden, p. 19)
Caminho sobre os trilhos…
Feche os olhos e escute o tilintar da partitura que fez dos trilhos a linha da música… Escute pois estou seguindo, é suave e cuidadosamente que toco a quietude da sua mão. Confie de olhos fechados, pois quando abrir há de confiar na invisível forma do silêncio por onde, solta, conduzi seus pés aqui…
Eu caminho sobre os trilhos, mas até eles, talvez num registro de antes ou quase depois, houve uma inquieta inquietude que arranhou por dentro como um choro que se violenta e não cai. Muita gente pronunciou o nome, cansado de se dizer repetido, tão diferente, tão estranho e de tão descomunalmente combinado, espetacular. Um espetáculo no centro da atenção que cansa. Há muitos ao redor, eu não me ajeito na cadeira, perco o jeito no garfo, falo qualquer besteira que preferia calar. Eu olho pela janela de ninguém, invento a janela entre lembrar ou ver um olho pintado num céu acrílico que me cega a contramão do que seja a onda do gesto que desenho risco de uma palavra palavreada e indizível.
E quando os vultos me desenrolaram de mim em mim, ali sorrindo ou rindo, não bocejando, ali quase falando e nada dizendo, ali cansando… Ali onde tudo parecia bem e estava e no entanto… No entanto eu queria, talvez saber o que é casa, se abraço, prato quente ou pranto, se são olhos que de repente me encontram e me encontrarão… Eu chorei sem que ninguém visse porque as lágrimas se tornaram invisíveis. E a culpa não é dos vultos nem dos rostos que rondam o nome de um suposto eu que chama, pede por mim, pede pelos meus temas e os ecos do que não sou.
Eu queria estar lá…
Lá fora, no banco ao relento de uma rua sem movimento, em pavimento refeito, máquina e pó. Eu estou lá, eu sou esse viés invisível que só os loucos podem ver…
E talvez de lá, sentada ao sol, queimando a pele já queimada na pele que treme a imprecisão do ISO, eu voltasse a andar ao lado do pássaro que ontem ou quando hoje ainda era noite que não amanhecia, pousou no meio da rua da minha então inquieta insegurança de andar a rua vazia, as ruas sós.
A rua, infinitamente vazia, a rua vazia não de mim. A rua vazia fazia do nada a plena, repleta rua da alma, fazia voar - e eu voava. Era longa, vista e profunda, tão funda que dela brotou um anjo de asas mansas da minha voz que se calou. Pousaram as asas como um sinal semáforo que diz, “segue, vai segura…” A rua por onde eu ia ou vinha aportou um pássaro. É porto da minha mansidão resguardada e esvoaçante da noite ainda densa de estrelas adormecidas e apagadas.
O mundo num trecho de rua que não dá medo mas fez a curva do corpo insegura. Foi um pássaro, outra vez, que desceu dos céus em asas de asas negras de um pássaro que, pousando diante de mim, esperava que eu passasse, como a mãe que acompanha pela janela o atravessar da rua, esperando ouvir a batida do portão.
A mãe sou eu, os olhos dentro lentamente pousados na criança que precisa atenção, o cuidado que é dado sem um senão. A criança é um mundo que eu embalo. Nana agora enquanto me entrego e o carrego nos braços. Depois, abre as asas, voa, eu olho e acompanho sem lado. Voa por mim.
Voa, que as minhas mãos estão estendidas, talvez esperam, talvez abanam. As mãos esperam quem vem pássaro para andar o voo ao lado.
Eu repensei um trecho, como um tecido retalhado e recortado de quando eu abrir as asas e um pássaro soprar a volta do vento eu. Refugiei-me desacelerando passos ou dando mais passos, abrindo o caderno e escrevendo até o último trecho da folha, da capa, do traço. O caderno riscado com eco sem voz das letras bambas chegou ao fim. Eu quis chegar a casa, mas enquanto eu ia chegando, ia-se em mim a casa perguntando onde estava, onde se estava casa?
Está ainda…
Eu sigo andando as madrugadas em que olho para trás e já não está. Então me viro outra vez e outra vez são pássaros, anjos que guiam minha noite andando só, entre ruas ou calçadas descalças…
Ofereço minhas mãos trêmulas, sem a alma da matéria ou das paredes. E definitivamente despida de receios ou medos, na coragem de ser essas mãos trêmulas e emocionadas lágrimas, ofereço-me pura e nua, inteira em mim, em mãos trêmulas, mas não vazias, as ruas não estão vagas, são almas... Pois quando eu andava carregada por um único pássaro, corria em mim não o sangue. Não o sangue, mas o sonho de quem abre os olhos e diante de qualquer coisa que destoa, descobre-se âmago, ou ser, para além, lá, depois dessa linguagem reinventada.
Fermo-me aqui, deixo às beiras das calçadas toda minha alma e meu corpo, doados a quem servir. Leva-me ao que lhe servir, toma de mim o que lhe faz sorrir, o que lhe traz paz, alento, aconchego ou casa. Toma de mim tudo o que possa por menino mínimo de instante fazer-lhe seguir. Eu não quero mais nada, talvez nem de mim para mim.
Eu não escambo. Escamo, bato asas. A noite se chorar eu embalo cantando mansamente o adormecer do pranto. No silêncio de uma noite em que tudo talvez se afaste, se allontana, se alonga para além dos meus curtos passos…
Entre a quase entrega e um passo, eu dancei de cabeça voltada para o céu, porque se aquele pássaro existiu ali, então eu, por um instante milimétrico e fino, existi. Num milimétrico respiro que sopra para dentro a verdade, não faz eco, ouve ninguém. A verdade que não dá na palavra ou num arquipélago de universos escritos e estampados em vozes que repetem porque acham bonito, mas não o respiram.
Pássaro, já não sei caminhar cadarços, sonho como uma criança inocente. Eu sou essa boneca brincada nas mãos de uma criança que inventa a mais fina, a real verdade… A que propaga lares, lagos, mares, amores sem quase… A que acredita brincando.
Fiz do silêncio uma prece e respirei o ar da noite, entregando-me outra vez a digna confiança do acaso… Sem ver o pássaro ou o instante nem o instante do que será o instante…
Feche os olhos, me dê a mão. Eu conduzo daqui. Os olhos abertos fechados, de mão na mão, um movimento de balanço, avião, mansa paz…
Sorria, nossos pés já são a contramão. Os trilhos estão desenhados mas não definidos, são como a janela que não foi aberta, pois esteve sempre esticada ao céu, um trecho, um fragmento da noite dia noite dia, um canto cantado direito ou direto do céu.
Hoje amanheceu o mar no céu, eu anotei (o céu amanheceu com jeito de mar - filho onde agora nasceram sinais do rosto de um desconhecido, um amigo, um velho ente querido, os olhos que contrastam um contraste a mais) com os olhos míopes, com sombras coloridas de Van Gogh numa fotografia em preto e branco ou com as unhas que despretensiosamente riscam as cores terras no corrimão…
As páginas, as letras e ainda um resto de qualquer coisa que se partiu ou que partiu de um sempre num nunca mais (nunca mais? não. para sempre…). E… então, um gosto entre conhecer e sabor, algo qualquer de tanta similitude, tanto em comum, tanta afinidade afinada desafinando a medição do tempo, o incerto centro do desconhecido, que será pena se se desacreditar ou se se aliar ao receio da linguagem quando é aquilo que não dita e não se explica. O que existiu numa segunda-feira ou numa sexta, ou numa mescla do que se chama tempo que se recorta e se desprende da métrica finitura, genuinamente é a infinitude transcendente.
Mas eu estou solta e o que encontro vem de encontro. Eu não amarro, não seguro, não prendo, eu não imploro. Eu amo porque desconhecida do medo de ser tola eu não sei ser outra. E para a vida aqui agora, sem aqui e agora, eu me entrego num tempo de palavra já entregue. Não sei ser outra, sou outros todos tantos, os outros todos. Eu gosto, acolho, alento, faço-me ninho e tudo é para sempre. O topo das árvores, um verso, a intenção de abrir na primeira página mesmo no resto de um livro de milhões de páginas em branco de um impossível - mas ainda é tudo possível, nos ventos contrários, tudo é possível. Afino a ponta dos lápis, afino minhas mãos trêmulas, lanço-me… Em branco a luz floresce. Tudo, quase tudo, sopra, eu sopro. Eu abro as asas e você voa. E palavras para qualquer coisa que eu juro é outra… Um instante basta para conhecer o que para tanto uma vida em anos não ergue, não propaga, não basta.
É verdade, é que… É verdade, também eu durmo com a janela aberta e tomo banho no escuro. Mas eu ando de olhos fechados e ao invés de olhar para o risco dos carros eu olho para o céu (“o que vemos quando olhamos para o céu?”). E o acaso molda-me escultura do futuro, um futuro na projeção da palavra futuro quando o futuro é o que já foi e se persegue num não rompante, num sendo, mistura de tinta de preto e branco em colorido… Não são formas de deuses, é a abstração dos deuses mitológicos existentes mais reais que o mono ou a sobreposição da lenda. Um mito que se crê mito.
Um mínimo instante de um riso ou de olhos que não são as cores dos olhos, não é forma de um corpo o que se desprende e se reconhece. É aquilo que a palavra tenta - está tentando - fazer caber numa palavra na qual também ela se desconhece. A linguagem é outra para o acaso imprescindível na dimensão de uma suposta realidade, a linguagem para o que vivo ou para que vivo é outra.
Estou nos trilhos e sobre os trilhos eu danço de olhos fechados, pés soltos e descalços e em algum instante há de um haja e haverá - sei -, a mão de encontro aos meus dedos, que dançará a mesma música invisível nos passos soltos sobre os trilhos. Os olhos fechados se encontram, se olham e reconhecem a linguagem. Serei vista então pela primeira vez e pela primeira vez existirei mansamente para além de mim, numa linguagem que aprende a falar para além do céu e dos pássaros e do vento. Sopro mansamente, imensamente, a língua dos peixes, dos pássaros que amam meus passos escuros e inescusados da noite que, acordada, não despertei.
Nota:
“Tudo é possível diante dos ventos contrários…” -Edgar Morin citando Vassili Grossman