Meu coração é uma prece

Eu não sei se foi de distração ou de manhã que acordei quase num susto de janela clara e nuvens e promessas de chuva. Eu havia dormido fundo e distraidamente. Eu passei sem ver e existia um milagre contrafeito de efeitos e feitos e… Nada soube-se dizer porquê. O porque já não havia. Então, um mundo de eu outros resistia. Eles não tinham vozes e na voz que não tinham havia um eco de grito que não grida num timbre que agride, “resistir ao jogo de tudo isso, que dizem, está em jogo…”

Eu levantei-me e só. Vagando como se fosse apenas um eu que escreve eu, só - um ego centro oco, pobre podre e espalhafatoso. Mas eu de um eu sem eu, um infinito desconhecido que não abriu a janela. Ouviu o sol bater na porta, adentrando com as nuvens e os sopros.

Eu fiquei como só eu. Sentada ao chão, costurando ponto a ponto os pedaços de vidas que não foram escritas, que ainda não tem palavras e talvez nunca tenham. Eu fiquei só eu sentada na grama molhada da chuva. Os pássaros continuaram me sabendo, dando asas às lágrimas que eram demoradas, coladas ao rosto sujo da pele lavada. Quem viu-me rindo pra vida, na minha intimidade de amor e sonho, quem me viu rindo e cantando para o topo das árvores onde sobrevivo, talvez julgasse-me sem as penas daqueles que carrego comigo, meus mortos onde me vivo. Talvez julgasse-me por rótulos que não se colam e nunca se colarão ao sopro indizível de um eu feito de outros.

Entre uma mesa, o chão branco e o vidro trincado, eu voltei pra guerra, voltei sem ver…

Eu carregava nada, eu sangrava as palavras na mão como tinta que corre trincheiras sem nunca relatar a vida de um outro, um eu alguém…

Eu fiquei só com eu, recolhida na trincheira indizível. Olhei no fundo dos olhos de quem não existe e vi ternura povoada de medo, de sonho, de saudade, de vínculo, de compromisso com a derrota, de vontade depois, de crença cristalina na paz, de busca, mãos dadas, me dá a mão e trilha a vida comigo - por vontade livre e própria, por ser liberdade… Na guerra, toda vida perde. Conceber lados já é a derrota, a miséria, o castelo de pó propagado nas luzes banalizadas banalizantes.

Os preços estão em causa.
Uma vida acaba de se apagar agora enquanto a manhã ainda dorme, enquanto a televisão ainda está desligada.

Eu voltei como quem não saiu ou sairá, como quem sem perceber pensa na guerra que não entra na palavra guerra. Na paz que não cabe na cor da bandeira que tremeu o vento e se cessou. Estanque, no último suspiro.

No último suspiro, meu corpo e minhas vestes estão molhados, talvez seja a chuva que formou o rio na trincheira da fronteira da minha lágrima cega e sem norte. Ali naquele canto inexistente de uma fronteira entrincheirada de vida sentindo frio eu pensava não pensando, sentindo no peito que toma toda a energia restante do corpo para pulsar o pranto impulso de sangue quente. Corria em mim a morte de quem fica. E toda a morte que não é a morte senão um rosto, um jeito, um toque de um único alguém que nunca mais se repetirá. Um alguém que nunca mais se repete. A paz de alguém que vai voar das fronteiras de qualquer estrada ou porta ou transplante, oxigênio, desligar a máquina, limpar a estante. Para quem sente em si a vida de um alguém que não se repete deixar-se perder pela força da vida não é dimensionar a guerra. Ter de deixar de partir é aprender a libertar o ímpeto da vida. Para quem ainda aqui segue, pouco importa se é pela guerra, pelo acidente, pela doença, pelo incidente, pelas mãos ou pela vontade… É soltar-se, abrir os olhos para não ver o choro em choque que se pergunta como faz para aquecer…

Como faz para aquecer o corpo que resistiu ao fim de todas as trincheiras…

Para quem sabe a morte que chega na candura de uma manhã nas portas de um verão… Sabe que a vida não dá em noticiários nem nas opiniões especialistas que agora correm como avalanches sobre tantas mortes. São eles que estão frios, deslocalizados e in-sentidos, lendo um raciocínio pronto como se a vida fosse do número em cálculo. 

O mundo existe aos bilhões, ou mais. E nada, vida nenhuma se repete.

Diante dele me tenho de olhos nus, só aqueles olhos de silêncio contam-me o que só aqueles olhos conhecem. Eu não quero os números, não quero a atualização dos dados nem a última notícia. Eu quero estar pura e nua diante de cada rosto, quando não há um rosto, que me encontra pura e nua e nunca. Como encontro que nunca, nunca mais se repetirá.

Há anos esse suplício de vida me suplica pensar a morte dos mortos que não morrem. Os mortos que se vivem dia após dia, que não me cessaram, nem afastaram suas vidas em mim. E continuam…

Os mortos das guerras que não sei noticiar. Vidas que sinto, de algum modo, vibrar em mim, por serem infinitas, irrepetíveis, desconhecidas. De quem carrega a minha vida em um outro que nunca será o outro da notícia, da nota, do caso escandalizado, do papel do fim. 

Um ser feito da vida infinita e irrepetível, um ser indelével, marcado em mim, vivendo para sempre em mim, além de mim. Para depois do dia que chego ao fim no ponto traço do meio da página que riscou a pele e sangrei. Um ser que não é contexto da morte, nem o número da morte. É uma vida inteira infinita e singular.

A criança do bombardeio. A criança que ficou de bruços nas margens da praia. O rosto em panos amarrados. O desespero da mãe que chora. A mãe que é a mãe sem filhos, me sabe entrando de cabeça baixa, atravessando a porta. Os olhos que me não viram entre armas. A bicicleta de quem atravessou países para sobreviver. Aquele que sorrindo, na esquina, diz que tem fome. O rumo do muro que me atravessa e me destrói e martela. Aquela que conta sua história sem nunca mostrar-me a cor do cabelo. As mãos que segurei e me agarraram. As vidas as quais dei as costas. A chamada telefônica. A dúvida se foi ouvido ‘eu te amo’. São todos instantes da criança que embalo embalando o sono para o sonho, a proteção de paz dos meus ossos ocos, meus braços tremidos. São todos instantes que não se apagam e não me esquecem do eu só que não sou.

Nada se repete. Eu abro os olhos daquele que se fechou. E aqueles são os olhos do acontecimento ainda, para sempre. Como nada nunca poderá ser. Como nada poderá repetir.

Eu nada sei escrever sobre a guerra de quem sobrevive ou vive a morte ou a solidão. Escrevo porque não desejei pensar na guerra que me pesou pensou pensada em mim no meu trajeto des-trajado travado movente num sopro sem rosto que vibra em mim. Eu sem escrever canso. Eu desisto e desistindo insisto. Resiste a neve nos braços de quem abraçou.


Eu enxerguei um canto cantando entre os galhos de uma árvore que imitava a cor das penas de um pássaro que não-vê-ninguém-o-vê. Eu vi ali escrito que se olhássemos para a natureza viva a andar o próprio instinto de verdade, então talvez guerra fosse algo extinto como coisa que nunca existiu ou ninguém soube.

Eu voltei para a guerra, as mãos tremiam, imaginando imaginadas pedras entre os dedos. Nas mãos o sangue correndo no rasgo da folha de um papel fino. Um fino sutil papel tão capaz de rasgar a pele em definitivo. Como uma navalha, um bisturi, a ponta de uma agulha quando costura o ponto no nó da garganta sem voz. Essa voz que me oculta. O sangue correndo agora, na lisura branca de uma margem ainda não escrita.

É o mesmo tempo em que dedos brigam com a lâmina da tesoura que não rompe o invólucro da comida. Um corte velho e sem fio, ferrugem do ferro envelhecido e sem força. Quando se rompe, o invólucro, é nos punhos incapazes de controlar a força do romper. Se abre, se derrama, o chão comido de migalhas e tiros surdos que foi ninguém - quem - ouviu.

Eu voltei para não entender. E não entender era muito mais do que não entender. Era o absurdo de conseguir entender o que não se pode entender… Sobre a guerra ser uma coisa absurda e ainda acontecer. Sobre a morte ser coisa única de uma vida por acontecer. Sem guerra, sem lamento, sem poder dizer.

Uma aura de guerra existia inexistente sobre a cabeça mínima de pássaros que cantavam antes das horas da manhã, quando a guerra alcançaria o auge nos alto-falantes. Cada boca de palavras alinhadas ao pensamento é um alto-falante falante demais…

A aveia arrefeceu endurecida no prato branco, de cabeça baixa eu pensava em quem morre e quem fica para quem morre. Meu coração é uma prece sem Deus, em Deus, sem música. Minha prece dizia amor de instante a instante do instante que não se repete.

E pensar nisso me fez olhar outra vez para a guerra mais lúcida e translúcida, a face da guerra que não existe. Aquela em que rostos não são fotografados e biografias não são resumos. Gente feita de gente que não é vista e nunca será, nunca existirá pela força do óbvio pragmatismo das respostas urgentes, das ações pragmáticas e emergentes…

Meu coração é uma prece em ebulição, preste a explodir. Prestes a implodir. Sopro e pulsação.

(que cada ato do meu pensamento seja sempre sempre um ato de amor)


12.03.22
13.03.22