Sentei-me na sala vazia…
Estamos condenados por tudo aquilo que inventamos como limite.
Estamos condenados pelo arsenal de dominações e denominações do que existe.
“Mãe, seria tão bom se não existissem bandeiras…”
Seria tão bom se essas perguntas fossem apagadas… Sobre locais de nascimento, sobre demarcações, sobre de onde vem ou venho, para onde vão, sobre (de onde somos?, afinal)… Seria tão bom que, mesmo se elas existissem, não fossem o limite para a vida de um ser acontecendo.
Mas quem foram nós que criaram bandeiras e sob o jugo de um pedaço de pano de cores recortadas estabeleceram métricas da terra, dos céus, dos oceanos, da vida que, por mais que queiram fazer caber numa existência dita, ainda assim, ainda aí é uma vida existente prestes a acontecer acontecendo inexistente-mente?
Havia chuva na janela, a porta in-supostamente aberta, o vento correndo… O vento correndo. A mesma rotina de todas as manhãs, escovar os dentes, beber café, lavar a louça, não olhar no espelho. Nos atos diante de uma janela que olha entre os olhos pingados da chuva eu fui pensando sem pensar que pensava. Havia uma palavra que pronunciava guerra e… Talvez eu estivesse tentando pô-la na superfície da língua e, letra por letra, sentisse as camadas mais profundas. Eu fiquei sem saber se era guerra ou eram guerras de uma única guerra.
Eu choro, agora. Eu choro exatamente agora a minha miséria humana. Eu choro mas não me comovo com a comoção generalizada, estampada nas chamadas televisivas. Eu sento para mastigar o pão, eu levanto e olho para a tampa do lixo, olho para as roupas penduradas, os calçados na porta. E eu fico pensando na fome, nos cartazes que pronunciam “tenho fome”, nos nomes das mãos que costuram estas vestes de preços de um engano. Na minha pobreza, naquele país, quando eu não tinha nada a oferecer além do meu estômago cheio, eu que não podia nem mesmo retribuir o riso de quem dizia fome. E eu penso nas crianças amarradas nas fronteiras e nas ondas do mar, na palha trançada dos povos que estão também em mim despercebidos. Eu escuto quem pede uma moeda, uma moeda ou qualquer coisa e quem agradece por um único sorriso que pude dar. Eu olho para as guerras que a televisão não viu, ou não fez ver, ou não deixou ver. E eu não consigo me comover com tanta gente, com tanta gente repetindo, repetindo, repetindo… O mais do mesmo, a pontuação de um agora sem um antes, sem um horizonte um pouco mais esparramado sobre arranjos e conjecturas, ou o previsível.
Eu acho, tanto, que é preciso fazer silêncio.
(aquietar…)
A torneira está aberta. É o barulho da água correndo que me diz que precisamos de silêncio, precisamos fazer silêncio e talvez notar as batalhas que perdemos ou que nos condenamos por não lutar contra o medo de nos revelarmos seres para além de nós mesmos… Por medo de amar e por amor se entregar…
E o medo que não quero ter, que nunca mais vou ter. E todos os fracassos e quedas que me irão desenhar, se tiver sabedoria, talvez menos arrogante ao me revelar insuficiente. Insuficiente.
É porque, nem sei, mas fiquei pensando sobre a conversa de dois dias atrás, sobre pedir desculpas, agradecer, elogiar e perdoar. E talvez a verdade, naquela conversa, foi quando percebi e admiti minha arrogância por achar que peço desculpas e agradeço e elogio e perdoo o suficiente. A minha arrogância…
E o que a guerra tem a ver com isso? Parece que nada tem a ver com nada... Vou desalinhando este estado triste, hoje, dia 03 de março de 2022. É triste tudo o que está diante de nós e da existência humana em cada mísero segundo da vida em que não vemos o reflexo da guerra que passa ao lado, que é o nosso lado ou o nosso lastro. A escassez de afeto e de afeições, de pulsação e vínculo. Uma criança que quero carregar no colo e amparar e chorar junto as guerras todas que havemos de chorar. O ninar acolhido, em meio a isto, é resistência, nosso sopro de paz.
Eu não choro por um nome de país ou pelas cores que projetam no concreto. Eu choro a existência da criatura singular, irrepetível e única, que reconheço não conhecendo, privada de acontecer ou ser o acontecimento de si mesma. Para ela não há um país, nem agora nem antes, ela está em tantas partes do mundo que não a verbalizam nas notícias do meio-dia - são também pessoas ucranianas, aquelas que não foram, nem antes e nem agora, vistas. A mesma criatura que vai além de todas as inscrições e descrições que fazemos dela - como se nos fosse legítimo dizer o outro. O outro em mim, o outro que é em mim, infinito (sim, eu estou pensando em Levinas e em Derrida e em Buber).
Subi a esquina olhando para a luz deposta na janela. Comovia-me chorando em mim, sem receio de chorar. Porque enquanto a palavra guerra ia se afastando eu ia sendo enrolada em bandeiras, rótulos, panfletos, fronteiras, nacionalidades e idiomas. E os nossos olhos cegos e secos… Nossos olhos secos e cegos pregando vidas em rótulos, panfletos, nacionalidades, idiomas, bandeiras, muros… Muros de toda ordem, de toda a ordem…
A lente super focada e todo o resto tanto que fica de fora. E a história que não foi lida, as nuances de um povo ou de uma vida, as conjecturas sociais e a existência que vai além das designações e amarrações de um tempo.
(e as primeiras páginas de Mounier, o personalismo…)
Eu não notei que chegava ao topo, mas sentia a comoção que molhava meus olhos, porque caiam bandeiras e muros e eu chegava ao ser, uma criatura. Uma criatura que não é o meu dizer. É o infinito desconhecido de uma vida que acontece no plano escondido nos fundos dos bombardeios e das guerras que acontecem no sigilo de quem grita, mas não há lentes (revejo o voo das tartarugas).
Demarcamos a existência, o ser em suas condições sociais, suas cores, suas origens, sua sexualidade, seu local de nascimento, o nome de seus pais, o nome de um país.
Eu olho para a vida, eu quero estar de encontro diante do ser que possa ser. Puro, nu, infinito, o ser que não é a linguagem que dele faço - eu continuo sendo repetida no pensamento, a linguagem não dá conta da existência. O ser que acontece para além de tudo que possa ser dito de um alguém, de uma pessoa, um vivente, uma criatura.
Termino a subida da rua com os olhos húmidos, olhando para os prédios e o cotidiano repetido no ato de correr as rodas do carro correndo nas últimas notícias. Nossa ânsia por manter o horário nobre, o gás do noticiário.
Penso em você Clarice, você que tem me ensinado sobre a existência, sobre a vida, sobre a linguagem que não dá conta da existência… Penso em você e eu a rotulando: De origem judaica, nascida numa aldeia ucraniana, território russo (antes da Revolução), atravessadora de mares para fugir da perseguição, autodeclarada brasileira, aterrada numa língua em que escreveu-se Ser indizível.
Foi ali que continuei chorando, porque toda guerra me faz sofrer e pensar num ser que sofre me faz sofrer (e eu continuo com a imagem das tartarugas). Sofro e continuo sem me comover com a comoção que dura o tempo da notícia até o comercial do recém lançado produto que já está na lista do eu quero.
E eu não consigo parar de pensar nesses olhos frios que atravessam as ruas, que não olham nos olhos, que estranham o afeto e carinho de atos que não comovem. E as cotações do mercado, as oscilações de câmbio, rendimentos, mais coisas, mais capital, mais riqueza, mais grãos, mais expansão, mais relação, mais números, mais coisas, mais informação, mais conhecimento, mais podre poder, a reificação. A reificação. A utilidade inútil… E o poderio insano que queima e bombardeia como garantia de cofres de um número maior do que as vidas que são muito além do número que são. Cada vida, em qualquer lugar, em qualquer instante… Cada vida importa.
Deveríamos fazer silêncio para pensar - mais do que pensar - nas vidas silenciadas e tantas guerras silenciosas que continuam aqui, que continuarão quando as notícias cessarem (o cessar fogo). E todas essas vidas e estas criaturas existentes continuarão, para além do que delas dizem…
E continuarão também as que, pelo caminho, foram impedidas de seguir.
“Mas pelo menos eu não fui tolo” e estamos todos a par das últimas notícias.
É preciso fazer silêncio. Eu me perdi entre o que queria dizer e o que estou dizendo, porque eu não queria dizer nada, só queria fazer o silêncio da minha palavra que chora… Eu penso outra vez em Clarice, no “pelo menos eu não fui tolo”, na nossa pobreza de alma, nossa miséria rotulada, nossa escassez e grandeza humanas que insistem e resistem mais uma vez. Eu vou insistir, eu resisto e quero o risco de estar cristalinamente pura diante da vida e do que somos.
(“(...) Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. (...) Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. (...) Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo” e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. (...)” - Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p.45)
Minha insensível miséria…
Minha arrogância.
Longe de nós mesmos, apregoados em coisas e mais coisas e coisas que só são as nossas coisas pelas vidas em guerra dos outros. Seguimos a par dos acontecimentos, comovidos e revoltados com a tela, inertes, abandonados e desconhecidos.
Quem pode negar que estamos bem informados, que lemos as melhores referências, os maiores livros, que temos o conhecimento e o razoável argumento do raciocínio? Mas isso não garante o nosso pertencimento ao outro e a dimensão infinita do outro. Isso não garante sensibilidade de estar diante do outro, da vida. Isso não garante que sejamos verdadeiramente sensíveis para fazer da nossa fragilidade nossa força de resistir e reconhecer a grandeza da vida que não cabe no rol dos rótulos sobre um alguém. Isso não garante que alcancemos a coragem de, sem receio, dar a ver o quanto somos frágeis, o quanto precisamos uns dos outros.
Isso não nos faz perceber a sutileza voraz da guerra insensata ou como são sempre os mesmos os que sofrem, como somos condicionados a manipulação, como há quem enriquece suas fortunas agora, enquanto os esquecidos (existências inexistentes) morrem. Como é preciso fazer silêncio, baixar os olhos, pensar além de pensar, ser um pouco mais profundo…
Cada vida importa. Cada existência é única.
E o que eu quero dizer é nada. É para que possa eu sobreviver hoje, um choro de dia todo. É para que, diante de toda guerra que meus olhos cegos escutam, eu admita a minha arrogância de não pedir desculpas ou agradecer o suficiente, não elogiar (ou olhar para encantos preciosos que resistem à concretude embrutecida e triste) e nem perdoar o suficiente. É para admitir que preciso ultrapassar cada mácula e cada invólucro que redunda a vida numa margem, a uma fronteira, a uma bandeira… Eu quero estar diante de cada ser e quero ter amor em cada instante deste instante de vida que acontece para além de qualquer coisa que seja dito ou noticiado.
E todas essas palavras são, mais uma vez, minha arrogância, porque o que sei eu sobre quem sofre, sobre quem escuta os gritos e as quedas bombardeadas da guerra, as guerras surdas e cegas, que não chegam aos telejornais? O que sei eu sobre as luzes alheias, as escuridões alheias? O que sei eu sobre perdoar ou agradecer?
Devo falar cada vez menos, ser silêncio.
Precisamos fazer silêncio.
Eu me calo…
03.03.22