Tempo verbal(e)

Uma semana deitada ao sol, pensando no que não pode ser pensando. Escrevendo palavras que não são escritas e, por hora, são o nunca serão.

Não lembro se amanheceu o céu em nuvens ou se já era dia de sol claro, derretendo o vidro da janela, dobrando as curvas das telhas. Os meus olhos sem óculos, distraídos… Eu repetia os dentes entre a fruta e o pão e num pedaço dele ainda nas mãos eu ia entre perder e encontrar o folículo fermentado da massa branca e fina… Ia assim como quem não sabe que está pensando, não sabe o pensamento que se pensa sem pensar pensante, o instante em que sou e estou solta e sucede de acontecer-me o acontecimento que me toma parte de acontecer…

E no dia seguinte da manhã seguinte, eu observo os entalhes mínimos da massa do pão outra vez. Folículo foi a palavra que veio e quis dizer. E tudo era tão de repente, como se desperta ainda pelo pedaço de pão entre dedos gelados, frios. E o café morno numa xícara de gato, uma chávena.

Tudo era calmo e estava em calma. O avião aterrissava talvez já naquela hora sem relógio e sem sinal. E diante de um eu insuspeito e insabido de si, a farinha recolhida no pão dos meus dedos, o silêncio mastigado e engolido. Eu andava meus passos descalços de quem dorme sobre a grama, coberta pelo sol.

Do pão percebido em pensamento despercebido, os pés andaram a rua e…

Duas gerações antes de mim, eles eram analfabetos. Eram um dos retratos em dialeto, falavam, talvez, idioma algum. Duas gerações antes de mim, o logo ali, o parecer da distância, os passos que andei. Uma parada e as paragens seguintes. E a continuação dos passos e dos atos e das palavras que não param e não se param nem me param e não me apartam, não me partem, não me reparam. Não me fazem parte realidade da realidade. Palavras me esvoaçam sem geração, sem tempo, sem criança deixar de ser quando é vir a ser de envelhecer do sábio assobiando pássaro que inventa nascer. A invenção é a minha realidade. É a intenção do amor que entrego aos seus tropeços e laços, que também são meus. Os meus sem pertencimentos. 

Eu já amo mas ainda não sei.

Eu mastigo a palavra como quem está dizendo escrevo. Eu leio uma frase e repito a leitura. Repito, repito e algumas frases… Algumas frases estendidas não são seguras, não se seguram agarradas. Elas não vem até mim e eu as deixo que não venham. Não nos despedimos. Não sei se nos esquecemos…  

Eu…
Eu chorei quando vi Guernica. Eu, sem expressar, me espantei diante de Davi. Eu suspirei respirada, face a face, A primavera e O nascimento de Vênus, de Botticelli.

Se houver um lugar que marque nas linhas do conto um lugar de onde venho, talvez eu ainda encontre, pela primeira vez, uma menina vista pelo traço re-estampado na página branca de um livro carregado em mãos maiores de unhas pintadas com alinho. Uma menina que entrou e saiu das classes e dos anos sem saber exatamente o que fazia, além dos passos da dança dos sapatinhos e da saia de papel crepom azul, o azul claro da sua cor. Uma menina que inocentemente pegava a prova alheia para copiar do início ao fim, o que do início ao fim era a repetição de um eu sem ser eu, ou eu de mim.

Uma menina de joelhos rasgados e remendados e remendados outra vez e outra e outra vez. Olhando, olhando, olhando as árvores lá fora, o gramado, as flores pintadas no rumo do muro, um inválido atravessando a rua, a história de um velho vivendo no saco, brincando nas nuvens, um coelho na toca… Olhando aqueles quadros quadriculados num desenho estampado, que existiam só ali, num canto da página de arte. E num canto acocorada inventando tinta no barro. E talvez só a ela aquelas imagens eram de algo de vivo, de brutalmente vivo que naquele instante a fazia viver. Como a tela apertada do filme existencial e antigo que só a ela fez chorar e crer no âmago borbulhante insistente da alma humana a crescer-se viva de poesia, de amor que não faz prova de viver.

Aceito meus erros gramaticais.

O que aquela menina olhava é o que agora pergunto à menina… O que via ela diante das figuras tão pequenas relidas em releituras de Tarsila? Desenho que ao invés de tintas eram lápis de cor. E os lápis de cor, metálicos de outros desenhos. As cores que em algum canto no canto da cidade ainda se guardam, resguardam a menina diante de um desenho tão pequeno, tão pequeno do que talvez seja um dia sou.

Num pedaço de pão na mão e um silêncio de manhã de sábado… O horizonte ainda precisa de tempo para desenhar as nuvens e mostrar a faixa verde do sol reposto ao outro lado. E as estrelas que fui, fui de fazer os pés levar para ver… Não me deitei na grama escura, ainda não. Estiquei o pescoço. O mundo não existia além da realidade das estrelas desenhando o desenho das constelações não registradas, e que, para tanto, para o mundo não existem. E elas existem a mais profunda existência de não precisarem insistir para existir. Existem, desenho do livro de arte coberto de pó e nuances de um dia…

Não chego. 
De cada grão de trigo que lanço ao pássaro que nasce dentro de mim, não chego. Ando caminho. E se agora eu quase, algo, digo… É porque não sei… Não sei, eu fiz ainda mais silêncio e sentei-me ao sol para ser eu a contemplação de um tempo que é além de mim. Que me aquieta na inquietação que é só um resquício. 

Eu espero a espera de gestar-me o tempo, a vida, o instante que acontece e que está acontecendo. 

Eu não disse para aquela menina sobre o tamanho de Davi. Não o tamanho da pedra, o tamanho do gesto esculpido carinhosamente na curva do músculo, nos ossos densos como o oco osso do pássaro que voo. Eu não disse a ela sobre o desenho des-geometrizado da vida exposta e expressa de expressão que nada conclui ou quer dizer. Ou das cores de uma primavera sem flores que querem entender. Eu quero sentir, menina de olhos perdidos distraídos, o desenho que ama, a invenção do desenho que ama. Aberto. Sem depois…

Eu amo mas ainda não sei.
Sem depois.

Duas gerações antes de mim eles eram analfabetos. Contavam histórias. Ali sentada, permaneço em silêncio, de boca fechada. Engoli a saliva da sede. Eu não sei se eles conheceram minha voz, se souberam reconhecer meu timbre de voz baixa, cada vez mais baixo. Daquela geração, eu ando até eles hoje, talvez num mais do que nunca. Talvez como quem flui do mundo de uma menina de não saber, nunca há de saber.

Tenho feito de uma quase página do livro, a criação num horizonte de passos andados de inventadas invenções. Assim o quadro se fez maior, a escultura se esticou no centro da sala. A vó ainda anda arrastando os pés, usando calças e vestidos nos tons do girassol que gira, gira, gira, gira… Um paiero na voz rouca do vô de olhos tranquilos, também ele qualquer coisa de silêncio e pausa entre palavras.
Silêncio, o mundo dormiu numa cama de hospital, branca de palha. 
Eu sou estranha a tudo que marcam como destino, raiz ou origem, ou quase tudo. Sou estranha a tudo que se reconhece ou reconheço.

Sou uma menina de e sem meninices, uma mulher sem idade, uma velha usando tênis gastos. Um sonho. Sou a outra face da face da… O que é isso que quer dizer realidade?

Eu quase pensei, outra vez, sobre todos esses passos até aqui. Quando está prestes a ser lacrado o intermédio das páginas de um capítulo aqui. As páginas seguintes já se começaram, talvez eu ainda não… Estou sendo - talvez, outra vez talvez - gestada pelas páginas e pelo por vir. Eu já comecei, mas não sei. Continuo, sem começo, sem fim. As palavras ditam.

Duas gerações antes de mim, eram analfabetos contando histórias, andando-me histórias entre o alto das laranjinhas do céu, doce da doçura de uma criança sem mal. A parreira, os cachos verdes e maduros, avental e perna bamba, balas escondidas, sacos plásticos feitos papéis de presente…

…E o que eu ergui, como ele, sem matéria nem tijolo. De um tempo em outro tempo, eu sentada ao chão e ele num toco da terra batida esperando fecundar uma semente de fruta e sombra e depois, de sonho. O que ele ergueu pensando. E eu fui sem saber pensar pensante. Eu fui, de criança, sem saber sonhando. Sonhando, sem esperar pelo depois do sonho.

Duas gerações antes de mim. A voz, o eco…
Escrevo sem passado, sem presente.
O futuro do tempo verbal, o verbo do tempo que não sei aprender. Eu escrevo porque não sei o que não aprendi escrevendo. Ou ser.


05.02.22
06.02.22