(23.08.2019 - 23.08.21 - sem ajustes, sem atualizações, sem as novas condições... Está ainda insistindo porque continuo sentindo a fumaça escorrendo um país...)
Hoje de manhã acordei com a mesma imagem com que fui dormir. As chamas nos olhos e um choro engasgado, uma amarga sensação de impotência, de fraqueza, de inutilidade.
No outro lado do mundo deu pra ver a fuligem fugindo, deu pra ouvir as árvores lamentando o fim da vida, os animais sufocando como o gato que morreu trancado num prédio em chamas, uma criança que ficou dormindo no berço, um homem encurralado no corredor antes da porta. Não há caminho de fuga. Dá para ver a cor se apagando, se apagando, se apagando. Apagando tudo ao redor. E o ao redor é o mundo inteiro. Porque fronteiras, limites e divisão são invenções que não existem.
Com tudo queimando fui escrever, assumir o papel de algo, a responsabilidade de ser filha do mundo, da Amazônia, dos índios, da floresta, dos animais… Dos animais. No desespero de dizer, pode ser que encontre alguém que me faça entender o que não entendo, como somos capazes de ir tão longe?… Tão longe a fumaça no céu… E o nosso protagonismo diante do que estamos destruindo.
Na minha história de criança fui encantada pelas coisas da natureza, cresci alimentando um orgulho inexplicável da Floresta Amazônica, o pulmão do mundo, esse nome erguido verde em mim no sonho de um dia ver de perto, nos próprios olhos. Na escola se falava da preservação, de cuidar das árvores, de não poluir, não desmatar, de cuidar – naquela altura ninguém falava sobre não comer animais. Plantei árvores em margens de rio, recolhi lixo em margens de rio, participei de campanhas. Tudo isso serviu para formar consciência do mundo e de quem o divide comigo.
Depois veio o vegetarianismo e as primeiras visões sobre a vida animal, sobre seu interesse intrínseco, o direito e o querer viver. Quebrei a caixa que vivera até ali, fui me afastando da arrogância humana de que tudo que estava ao meu redor existia para mim, superior.
Depois veio a iniciação científica, os estudos sobre consumismo e seu reflexo no espaço natural e a relação com a destruição do planeta. A noção de como uma sociedade baseada no capital e sustentada pelo consumismo (toda noção de sucesso e qualidade de vida hoje está baseada em consumo) aceleram o fim da vida.
E então o veganismo e toda a cadeia de exploração da vida animal, de todas as formas de vida, os reflexos disso na saúde humana e o prejuízo ambiental. Depois tive que entender que não basta um veganismo de rótulo, substituindo versões animais por versões vegetais, essa é mais uma vertente do sistema capitalista, que utiliza de bandeiras e causas para lucrar. Entendi que o veganismo não pode se estabelecer em condições de consumismo – como uma moda que pega – e que não deveria estar distanciado de outras questões que dizem respeito a vontade de viver plenamente. O veganismo é ato político, significa respeito a todos os animais, humanos e não-humanos. E não se desvincula a outras lutas.
Nesse meio ainda teve um mestrado em Direito Ambiental e o meu embate pessoal entre sentar e criticar o sistema com bases teóricas; ou não concordar com o sistema e toda essa lógica irracional de consumo, confrontando-o através de ação prática pessoal e cotidiana.
O que quero dizer: o sistema vigente não presta. Nos aliena, amplia desigualdades e acaba com todos os recursos naturais, mas no meu caso saber disso não basta, preciso que o discurso se reproduza na minha atitude frente ao mundo – pra mim funciona assim.
E o engajamento que o veganismo está alcançando mundialmente demonstra que há esperança e que ações individuais impactam o mundo conforme alcançam mais pessoas que aceitam o desafio de sair das suas zonas de conforto e desenvolvem a empatia pelos outros – humanos e não humanos. (É nisso que quero acreditar)
Pois bem, peguei a segunda via (e não foi fácil – quando comecei a estudar as questões animais na graduação quase ninguém pesquisava ou sabia algo sobre isso – Qualquer dia conto como foi a primeira apresentação de trabalho).
Depois veio a literatura, o veganismo político, o poder da alimentação ativa, a atenção para a agricultura familiar e biológica. O trabalho desenvolvido por movimentos sociais para a preservação ambiental. Os povos indígenas. A preocupação com o futuro dos meus sobrinhos.
Nada está isolado, ninguém está sozinho. E isso também é veganismo.
Tudo foi acontecendo, o tempo passando, troquei o Direito pela Literatura, continuei lendo e estudando pelas beiradas, sozinha. Observando e analisando mais do que manifestando.
Mas aí você que leu até aqui vai pensar e daí? O que tudo isso tem a ver com a Amazônia?
E aí eu pergunto pra mim: O que tudo isso tem a ver com a Amazônia?
Então eu volto para o meu dilema de mestranda e para as alternativas que temos:
Esperar passivamente que o sistema mude; ou
Lutar e contribuir para mudar o sistema e o consumismo a partir da nossa mudança.
Vejamos: O desmatamento da Amazônia não é uma preocupação de agora, quem está mais próximo do assunto sabe que vem sendo debatido há muito tempo. Sim, nos governos anteriores houve muitas críticas quanto a despreocupação com a floresta, sempre houve pedidos para que se tomassem medidas sérias para a preservação da Amazônia. No entanto, mesmo não tendo sido o ideal de preservação não havíamos chegado, até então, a um descaso tão grande – eu juro que não consigo entender como como pode, como pode tanta indiferença. Em agosto de 2019 estamos vendo a floresta queimar drástica e desrespeitosamente, todo um ecossistema está sendo destruído (fauna, flora e comunidades).
A atenção dada a Amazônia por parte dos governos nunca foi suficiente. Porque – me parece – não basta controlar o desmatamento. É preciso parar o desmatamento. Práticas que destroem ou prejudicam a Amazônia devem ser extintas. Pelo menos é isso que eu quero, ou era o que eu queria…
Mas por que (des)matar a Amazônia?
Em grande medida o que motiva a destruição da floresta é a produção de gado. Derruba-se madeira para plantar pasto e soja que vão alimentar bois e vacas que depois vão parar no prato de quem pode pagar – simploriamente falando é isso. (Não estou usando dados, números e estudos internacionais porque não é a intenção, caso seja preciso a quem considera mera divagação). A produção de um pedaço de carne envolve um gasto gigantesco de água, gera poluição do ar e do solo, causa violência física e psíquica para os animais e para os trabalhadores da indústria do abate. Mas esse custo não entra na conta.
Devemos exercitar nossa consciência diante da forma como nos alimentamos porque parte da Floresta Amazônica queimada está no prato, três vezes ao dia.
E é neste ponto que se ancora o papel individual que cada um tem frente ao que está acontecendo hoje no Brasil e que se reflete no mundo todo. Quando não queremos olhar criticamente para algo ou não abrimos mão de um hábito alimentar estamos contribuindo para que as chamas se estendam um pouco mais na Amazônia. Pode ser duro demais ler e escrever isso, mas é verdade.
Agora, some-se a isso um governo que ignora índices e relatórios nacionais e mundiais, que já deu a letra sobre o que pensa sobre os ativistas, que não repassou verbas, que não reconhece povos indígenas e a demarcação de terra e que ignora a crise ambiental. Teremos como resultado o momento que estamos vivendo agora. O dia que virou noite feita de fumaça está sobre nossas cabeças, aqui e agora.
E a Floresta Amazônica que desde o meu imaginário infantil se construiu como um lugar mágico de animais e plantas, de povos que aceitaram o desígnio de estar e proteger esse lugar quando não era preciso protegê-lo, antes mesmo de existir no mapa de exploração... Esse lugar começou a pegar fogo. A casa começou a pegar fogo. Eu e você estamos morrendo juntos, aos poucos. A nós restará o lamento de ver o antes e o depois, de engolir um “foi tarde”, de coçar no corpo que poderíamos, deveríamos ter feito mais.
Porque a vida está queimando. E por quê?
E por que eu resolvi falar sobre isso?
Pois é, por quê?
Durante um tempo tentei me afastar das discussões e debates, vivendo meu veganismo e as coisas que acredito sozinha, ou pelo menos apenas com os debates e diálogos internos. Mas essa última semana, depois de estar vivenciando algo que jamais imaginei vivenciar eu sei lá, resolvi (tentar) falar um pouco sobre o que penso, sobre o que acho que sei sobre isso. A intenção é tentar contribuir no diálogo e talvez despertar uma pontinha de interesse e curiosidade em quem não sabe muito bem o que está acontecendo. (espero que se alguém ler esse texto e alcançar esse interesse me escreva)
E porque rezar pela Amazônia para mim não basta. Deve haver – e há – algo que possa ser feito, algo que podemos fazer agora. Porque se continuarmos acomodados nos velhos hábitos de sempre, apegados ao paladar violento e destruidor eu realmente não acredito que será suficiente rezar.