Fome país – trecho

“Más que eso quiero pedir

Y es que no sea todo para mí

Sólo lo disfrutaré de verdad

Si lo puedo compartir

Quiero, quiero, claro que sí”

(Quiero para Mi – Canticuénticos)

(...)

A direção leva para onde?

Esse arrastar de sobrevivência, vivência louca falada entre o cheirar e o corpo que se dissolve, a cor suja nos pés sem calços, descaso, um prato doentiamente limpo. E a chuva que é bela mas tortuosamente fria para o céu sem telhado. Eu queimo os papéis, restos de fogo ou pranto. Esse contraste gritante sou eu, eu conheço-me sem lado, infinitos lados que desaparecem mapas, dados, concretos, ainda armados…

Amados?

Não me encontra o tom dessa palavra país que sorri para foto e escreve solidariedade, posa bonito e bate palma, reconhecido entre os seus. Os bons, que quando a câmera desliga se fecham na janela, olham pro lado e esperam até que a fome no papelão passe. A pobreza é dentro, tem ar condicionado, horário marcado, mapa por onde andar, controle para o portão, julgamento e aval divino.

A fome tem raiz fotográfica, tem história talvez registrada e esquecida na mesa, entre migalhas de pão. Tem histórica professora (de história) agarrada a nova história noticiada como se não fosse invenção, defesa absoluta moral e religião dos bons filhos. Ao fundo possuem a esfinge continência e a cor escolhida para eles que tem os números crescentes em tempos de crise, armários cheios de méritos e dons. Eles possuem a defesa legítima e amparada pela cega
justa posição, as armas contra o mal.

E o mal sou eu, talvez você e, talvez, não a fome, mas quem a raspa na panela… Os bons fazem a denúncia criada em laboratório - falsa na suposição. Falsa apenas para nós, os maus da história. Mas a quem importa? O mundo ficou plano como a fome escorada no papelão. São os feitos de olhar para frente. Nós - ou eu - as frestas, nós de medo, inversão. Porque o medo imposto deve ser o medo meu que já não tenho ao abrir a voz de um pranto sem país, um pranto de alma que dói e não ronca no estômago. Pranto que, já sem força, diz “como pode?”...


Que eu não tenha voz ou vez, que seja eu a morrer de fome. Eu me dissolvo enquanto se ergue uma voz uníssona inexplicável de ódio e força aos berros de barrigas e bolsos cheios de cofres, os bons bilhões do mérito. O que foi que aconteceu? A quem falavam quando diziam humanidade?

(...)

08.04.21