Bandeira preta na cidade do interior

Estou aqui (e não). Endereço fixo. Portão e porta, chave no carro, quarto da infância. Mas fora de casa, longe de casa. Percebi com nitidez agora o lugar onde nunca fui, onde não sou, mas estou... Estou há quase seis meses fora de casa. E, atualmente, impedida de voltar… Demorei para escrever esse texto - pois é, eu levo tempo. Mas nos últimos dias ele está martelando e eu disse que, a qualquer hora, eu chutava o balde.

Chuto o balde.
Depois eu recolho o pano, bebo a água, seco o chão. Mas até lá…

Chuto o balde. Estou há quase seis meses no Brasil e impedida de voltar para casa. Seis meses praticamente fechada numa cidade do interior do país, onde, até dias atrás, eu acreditei que poderia estar realmente exagerando em pedir para atendentes do comércio local para colocarem a máscara, me constrangendo por atravessar a rua, por ligar e pedir para falar com quem me importo, sem saber o nome, e pedir quase que com súplica para que se cuidasse e usasse máscara. Exagerada - outra vez - por sempre sozinha, caminhar em ruas isoladas sem tirar a máscara da cara. Seis meses que faço isso, por confiar na força do exemplo, na intenção de apoiar quem olha para as ruas e fica na dúvida sobre aguentar o desconforto ou o receio de parecer ridículo num lugar em que o uso da máscara havia se tornado quase raro.

Fiquei doente, de alma doente ao entrar em estabelecimentos e me deparar com funcionários sem máscara, sendo guiados por patrões que fazem piada com pandemia. Fiquei cansada pelos toques no braço, demonstrações de afeto sim, mas que não cabem agora…

Em todos os cantos do país enquanto muitos médicos, enfermeiros e profissionais da saúde movem-se guiados pela ética de suas escolhas, por acreditarem na profissão que escolheram, outros tantos fazem das avessas. É melhor não entrar no mérito do exemplo de parte dos profissionais de saúde e autoridades públicas, do que foram as eleições, o natal, o ano novo. Não quero pensar na problemática ambiental atrelada a pandemia e tudo o que pode vir. Mesmo assim penso na Amazônia, no que estamos fazendo por um saco a mais de soja transgênica, pelo peso nos bolsos. Aos trilhões, no poder e no dinheiro do mundo que agora ninguém menciona… Fragilidade nossa exposta e sem ar... 

Certo dia, fim de tarde, saí de carro para dar uma volta e fiquei chateada. Ninguém tinha me avisado que a pandemia, aqui, havia terminado, ou talvez que nunca havia começado. Tudo estava normal. Sabe, os bares? 

Vivi a primeira onda do coronavírus na Lombardia, epicentro da doença, dias em que não se sabia nem o que poderia ser tocado, onde o vírus estava. Dias em que íamos dormir pedindo para que no dia seguinte os números fossem menores. Dias de confinamento sério, nas ruas só se ouvia o gritar dos corvos. E a possibilidade de abraçar era uma ideia remota...
Vim ao Brasil por desprendimento, por intenção e cheia de esperança de que tudo ficaria bem logo…
Seis meses isolada e longe de casa…
Com o portão fechado para visitas, Exagerando, Com medo do corona… Foi o que ouvi até poucos dias atrás.

Saio cedo para caminhar. Máscara e fones de ouvido.

Em cantos de tantos lugares, em tantas cidades, em muitas casas, bandeiras de um suposto Brasil estão hasteadas orgulhosamente como demonstração de gosto pelo país - não ouso usar a palavra amor para representar isso. Nós sabemos o que estas bandeiras representam. Mas como genuíno apoio e interesse pelo país pode representar tamanho descaso e descuido com um povo?


Sim, com pessoas do país.

Nossa falta de humanidade não nota que precisamos pensar além de nós, que é preciso dar a quem não tem, que é preciso ensinar como se usa uma máscara, o que de fato significa distanciamento social, que vacina funciona, que não há tratamento precoce para Covid-19, que cloroquina e ivermectina não tratam.

Dias atrás alguém me perguntou o que eu achava da situação do Brasil. Disse o que sentia, que Bolsonaro e sua política me pareciam ser um vírus pior. Foi um militar que me perguntou. Mas a verdade é que não quero alimentar nem mesmo contra Bolsonaro o sentimento que parece ter ele em relação a tudo. Eu não quero ser como ele...

Contrária às bandeiras, contrária a falta de humanidade, de responsabilidade e de cuidado de um presidente e de tantos outros que o exaltam, não rezo, nem peço a Deus. Contrária a eles, quero aprender a exercer a tolerância até mesmo com os intolerantes - não é fácil, mas vale a tentativa. Porque eu não quero ser como eles. Para a indiferença e brutalidade do descaso, cuidar e ter atenção aos outros, eis a nossa resistência. Ter bom coração, eis a nossa ferramenta.

Eu quero não perder o amor, o bater pulsado do coração. Quero dizer pro mundo que a vida vale a pena e que nós seguimos em frente. Que estou cansada, triste, ainda mais silenciosa mas que não perco empatia e afeto, porque o que eu quero é, em meio a tudo isso, pensar no horizonte com amor. Eu quero ouvir meu amigo de Minas chamando, “Oooo Daísa…”, eu quero abraçar minha amiga do Amazonas, escutar ela me chamando de Mana, quero dizer para ela que eu a amo, quero encontrar a Inês, a Sandra, a Mara, a Claudia, o Lúcio, a Ana Julia, ouvir a risada da Lu, ver a Iasmin voltando da feirinha, ver meus sobrinhos correndo, ver meus pais podendo passear como eles gostam, conhecer a casa do meu irmão, cansar de ouvir minha irmã falar, alisar o pelo da Juju, encontrar a Jéssica, beber vinho com a Ana, andar de madrugada, andar de madrugada... Quero rir dos desencontros e abraçar os encontros e abraçar ainda mais forte o reencontro do acaso. Quero chegar em casa e jogar a bolinha para o Chico, deixar a Ruska cheirar a comida do meu prato. Quero cuidar do mundo e cuidar do mundo agora é chutar o balde mas não desistir, não esquecer de fazer a minha parte, mesmo que seja pequena.

Quero ter mais calma a quem preciso explicar como se usa a máscara, que deve mantê-la ao falar ou quando espirrar, que este não é o momento de tocar, dar tapinhas no ombro. E quem tem fé que não a perca e quem acredita em Deus que continue confiando e orando. Mas acho que ele, talvez, também espera que cada um faça a sua parte tomando as medidas de cuidado, ao invés de deixar tudo na responsabilidade dele.

E alguém me ajuda a explicar o que significa distanciamento social, o que é crescimento exponencial, como se desenvolvem vacinas?

Quem puder que ajude como pode, mas ajude quem não sabe ou não tem acesso às medidas de proteção. Quem pode que não esqueça que, para muitos, a pandemia é só mais uma preocupação, porque eles ainda tem a fome, o trabalho, a violência, a opressão.  

É, não passo de uma garota estranhamente sonhadora, escrevendo poemas e histórias infantis, desenhando finais felizes para amores pandêmicos que quero profundamente abraçar e viver, acreditando em dias melhores, esparramando o horizonte na história com final feliz. Eu que não vejo impedimento para sonhos e não acredito no impossível...

Mas eu não sou nada e não sei nada. Sou só uma garota estranha e isolada, impedida de voltar para casa. Sou uma privilegiada por poder estar dentro de casa, por não me faltar nada. Por poder caminhar tendo máscara no rosto e álcool no bolso.

E agora, seis meses… Parece que, depois de tanto aviso e indiferença, as ruas se moveram e fizeram silêncio, as portas estão fechadas. Bandeira preta na cidade do interior.

Mas durou pouco, no dia seguinte, nas ruas, o movimento voltou outra vez ao normal. É o que parece...


16.02.21
17.02.21