Como um pássaro…

Eu não sei o que foi que escrevi no minuto atrás, antes, quando não escrevi. Escorri-me uma lágrima de emoção por ser criança, por nunca crescer, por ser sempre e ainda coberta em flores e mato estranho levantado entre telhado com ranhura de asfalto, cores que são doces nuvens desenhadas. Este estranho eu jeito, meio desenhado, desfigurado, desajeitado, empurrado, encabulado, afastado. Estranho entranhado.

Um segundo antes, picou como estalo, como se fosse dentro, assim sem existir outro lado, margem, oposto contrário. Um pique de pulso que incita mais para o lado, mais afastado. Mais afastada. Eu não sei exatamente do que estou afastada. Eu já não sou os lados. Eu já não sei se tenho o dizer dessa vida. De qual planeta… Qual príncipe esqueceu e esqueceu-se na flor de amanhecer rosado.

Eu não pertenço. Eu gostaria de doar a minha mão, meus braços, todos os meus lados. Eu gostaria que alguém quisesse-me olhar assim sem deixar de lado essa face inteira, meus dedos trincados, meus olhos fundos, meu riso confuso, meu incompreendido profundo, minha veste surpresa, minha forma antiquada, meu inescapável escapável estado de ser… Que alguém quisesse meu medo de gente, meu jeito de bicho… Alguém que conversasse a voz do meu silêncio e mesmo assim, sem compreender, compreendesse o que não me compreende e pudesse abraçar-me e olhar-me sem a profusão das horas ou dos dias e ainda segurasse minha mão mesmo depois de eu dizer sobre a solitude minha. Eu quero jogar-me num abraço lançado puramente abraço que se entrega sem querer, sem ser nada, sem pudor ou medo, sem reserva, eu que não me reservo nada. Inteira. Intensamente... Eu queria que aceitasse esse amor prestes a in-suportar-se e implodir, esse sentimento que não recolhi, que foi me sendo e gritando-se de si em mim. Eu que não dei espaço fui-me sendo e parece que um grande todo me foi afastado…

E ficar sem lado...

Quero ver estrela...

Num segundo depois eu me abstenho. Quebro a cruz das mãos eu não lamento, mas eu perdi outra vez a frase que me escreveu quando não escrevo. Eu ouvi que morro, para ultrapassar o cansaço da tentativa, para pular a crença na vida e não me desafogar. Eu morro e liberto-me da crença na vida, na reza dos dias da espera pelo amor que me doo - dói de doar - de futuro e sonho. Eu morro e então esqueço o perpétuo sonho, eu feita de sonhar. Morrendo desentoo-me, deserta inteira, não espero desespero. A vida se sofre, o concreto desmorono, eu esquecida a me brincar. Ultrapasso o cansaço de não abandonar e então o abandono de casa ou cachorro.

A música se cala, as estrelas se acalmam, os pássaros se abanam à noite quando olhei o telhado só... Eu consolo a morte no meu colo e por um mistério de segundo que não existe e então existe tenho o que quem precisa me abraçar. Converso-a, enxugo as lágrimas que precisam ser convencidas de que, às vezes, é preciso se abandonar, e eu me pergunto “será?”... Mas houve tempo de escrever um verso de livro infantil, ainda deu tempo de lembrar dos pássaros aqui ou de outro lado. Não sei se haverá tempo para uma noite de imagem em sonho, um sinal, um retalho rascunho recado, um recado dado sonho... 

Eu não sei o que ser depois de mim, nem antes…
Eu não sei quem sou esse estranho íntimo em mim.
Eu não sei quem sou quando todos estes estalos des-reais realocados feitos de heranças de mim…
Eu não sei onde vivo quando vivo e não vivo em mim.
Eu voo canto de pássaro e reparo em tudo que não conheço que me afasta porque não me afasto e me esqueço. Eu em portas desfeitas, eu em pó de vento. Eu de vento sem raiz, sem origem, sem precedência. Eu afastada então, como registro estruturado e pregado no prego da parede, eu desmembrada diante dos olhos que afastam. Eu sem saber dos lados, eu sem saber de onde para onde. 

Como um pássaro que não entende o vidro porque não é de si a solidez de vidro...

Fiquei voando nos pássaros que voavam na chuva, afeiçoando-me ao peso das gotas que corriam minhas penas... Afastada de mundos como um pássaro...


16.01.21
17.01.21
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21.01.21