Na manhã seguinte…

Foi o desespero que me colocou no papel com uma gota com dedos agarrando a goela, a raiva de segurar o choro e a curva de dizer.

Foi o choro quase chorado que me colocou no papel rangendo os dentes, estremecendo cada superfície e cada palavra errada, cada lentidão de dedos e ossos.

Afogara-se na garganta cada risco molhado que não correu e eu me escondo embaixo da cama, embaixo da mesa, o vômito. Eu não tenho nada mais a dizer. Eu sento-me de frente à janela e hoje posso morrer. Enraiveço-me na música, meus dentes se coçam, poderia quebrá-los empurrando verticalidades e lançar-me da escada… Não, voar pela janela e roer-me.

Meus dentes coçam a violência desse silêncio ruidoso de música e motor, a violência do abandono de vida. Desta forma miserável de contradizer toda esperança, espera, toda fé, o encanto, a cor, a luz, a sombra, todo cheiro, todo sonho que insisti pintar com laços de afeto, com jeito de cuidado, intenção de dizer amor. Eu não sou sonho. E escrever não me deixa feliz, escrever me cobra e me rouba e me cobre, mas desafoga, me salva e me morre. Me morre rolando escadas e alçando voo... Agarrando meu vômito, enxugando meu sangue, bebendo minha lágrima, a acidez doce do meu corpo. Eu não tenho corpo, não tenho para onde ir.

E não há mais nem mesmo a vida defendida contra ranhura e condição humana, defendida contra possibilidade e razão. Havia fé no inesperado de acontecimentos, no que há - haveria - de pertencer ao tempo, na lentidão...

Mas desfalecida, há a recusa em falar com a vida, mendigar ainda um cisco no olho, implorar uma letra de caminho, um cheiro... Fazer promessa, rezar pedindo, implorar, humilhar-se para que a vida dê um sinal em sua defesa num mundo contrário. Só que a vida então encoraja e reitera que coisas são como são. Tola esperança encantada de acordar e não ver horas nos telhados e se fazer compreensão à hostilidade das boas pessoas. 

Ranjo-me porque sacudi na porta para fora os arranjos e nada mais se arranjou, nada mais se arranjou. E desde lá eu me arranjo recortada, quebrada, remendada e sorrindo o riso que a rua acolheu agradecida. Até que numa noite o desconsolo verte-se e a rua dorme e a lágrima escapa e o eu afoga-se sem o apego de uma lágrima que escorreu mas se foi. O eu desprotegido de quem morre insistindo sorrir para vida que não é outra senão a negação de cada riso no horizonte.

Eu quero sentir amor. Eu sou o pior de todos os mendigos invisíveis e sem vida. Eu sou pobre de toda vida. E não há sorte para sonhar a noite com o ato singular de ser pega pela mão e ter a volta de um abraço que me acolha e me recolha por amor - onde nenhum outro ato de tocar seria o mesmo. Mas até o sonho é para afundar buraco, torturar ainda qualquer suspiro de aconchego e esperança.

Eu posso morrer pelo cansaço de esperar o olhar deitado no horizonte e não enxergar para além da mendicância que se alegra na imprecisão de uma lágrima que desce. Uma lágrima me encosta e eu me agarro a ela. Mas então ela escapa, se seca, acaba. Fico sem e me afogo depois de bater os braços na superfície do caldo de lágrima que já não é mais. E não insisto que ela volte a ser…

Morro-me com a noite e as portas abertas.
E no nascer do dia a morte já não será o sentido. Eu sentirei amor mesmo que não exista.
Eu insisto. Na manhã seguinte eu volto a insistir na vida.


15.08.20
16.08.20