Alimentar-se: O ato primeiro

Ao me arriscar falar sobre alimentação – com base na minha própria caminhada até aqui – comecei a questionar ainda mais sobre as razões que nos fazem estabelecer conexões tão fortes com a comida, com aquilo que aceitamos como alimento e de como tal relação pode se tornar ainda mais profunda e sensível quando decidimos mudar o modo de comer, mudar a fonte – ou parte dela – da alimentação.

A mudança, para alguns, se dá carregada por dilemas no âmbito familiar e social, outros perdem partes de suas referências afetivas, outros fazem transições instantâneas, há os que vão mudando gradativamente. Não há uma forma definitiva, nem uma receita única, cada um deve fazer respeitando o seu próprio modo. O importante é que faça com consciência e amor – penso eu.

Mas, pensando nisso, qual é a razão para termos uma relação tão forte com a comida? Não bastaria apenas comer e garantir a energia necessária para as atividades que desempenhamos? E no caso da alimentação vegetal, por que tanto tempo despendido em comida, questionando e construindo alternativas?

Pontual e conclusivamente eu não sei responder a tais questões.

No entanto, veja lá, ao nascer o primeiro ato é colocar o bebê no seio da mãe para ser nutrido – pelo menos deveria ser assim. Ao ser alimentado o recém nascido não recebe apenas o alimento apropriado para se desenvolver fisicamente, mas o vínculo de proteção e segurança, o amparo do mundo externo no qual vai existir e interagir. Na condição primeira com o mundo externo um recém nascido suga a seiva da vida que o nutre, a partir daí começa a estabelecer sua relação com o novo mundo. A partir do alimento o mundo lhe dá as boas vindas.  

Depois disso, a criança aprende a ter a autonomia ao experimentar, conhecer os alimentos, determinar o que agrada ou não ao seu paladar, infelizmente esse processo pode se dar de forma muito negativa, violenta e poluída, seja pelo desrespeito da autonomia da criança seja por aquilo que se oferece como alimento. E aqui o assunto pode não terminar mais, então vamos deixar essa conversa para outro momento.

Porque o que eu queria entender – e para entender escrevo – e o que acabei percebendo enquanto pensava sobre isto é de como a alimentação tem um espaço central na nossa vida, não como mera condição necessária à sobrevivência, mas enquanto vínculo invisível e latente onde pulsa este lastro de proteger e ser protegido pelo mundo. Porque alimentação tem a ver com afeto, com espaço de segurança, com proteção. Comida tem a ver com a nossa história, é conversa com lugares de origem, com espaços de onde viemos ou para onde vamos.

Hoje, mais do que me sentir protegida e amparada, percebo que a forma como me alimento se estende ao modo como eu posso cuidar e proteger os outros – este outro entendo de maneira ampla, a toda forma de vida, a existência, inclusive de mundos inanimados.

O veganismo que me guia – ou pelo qual estou tentando me guiar – é com alteridade, de reconhecer o outro e de olhar para o mundo com o amor de quem foi acolhido por ele e que também pode e quer proteger e cuidar. De modo que, particularmente, não penso no veganismo como dieta, nem olho à comida somente enquanto escolha saudável, assim como não pauto o veganismo numa substituição dos  ingredientes convencionais por versões vegetais – embora exista momento para isso.

No que se refere a comida, as reflexões que o veganismo vem me proporcionando há anos diz respeito a enxergar o alimento como organismo vivo e que advém de outras vidas. É fruto das histórias que estão nas mãos dos agricultores, que está na terra, no recurso mineral, nas águas, na existência de outros animais que, assim como nós, o primeiro ato é o de sugar do seio da mãe a fonte da vida, alimentar-se e a partir daí relacionar-se com o mundo, ser amparado pela proteção do mundo – e aqui outra vez assinalo que, pelo menos, é o que deveria ser.

Se fui protegida e amparada na alimentação que recebi e recebo e se consigo enxergar o mundo de forma mais consciente, compreendendo a comida como algo mais profundo, então posso responder a isso reconhecendo e não rompendo o vínculo, tentando ser ao mundo um pouco de cuidado e proteção.

Então, acho que veganismo, para mim, ter a ver com isso. O reconectar-se com a vida, o respeito com a existências de animais humanos e não humanos e com a intenção do mundo que me acolheu.

Toscana – julho 2019