Inspiração…

Agendei horário para ficar com a chuva, escutá-la… Não é verdade, quando veio previsível e improvável eu apaguei a luz e fui para ela, pedi se podia ficar… Fiquei na luz escura, o estado natural...

Enquanto chove não quero outra coisa senão aquilo que a chuva conta, a contação da chuva, a história entre histórias de chuvas. Na manhã seguinte juntam-se a ela os riscos. Se arrastam na pele riscos queimados. A sobreposição adaptada do tempo, a refeição, o gesto, a gente…

Se fosse possível que vissem o que não vi... A porta tremia no trovão, era plural. Firmaram-se atrasados ao clarão aviso. Quando estrondos vestiram a invisibilidade do silêncio, pássaros cantaram misturados as gotas, pingos escurecidos da madrugada. A noite canta a melodia inteira, horas feitas para não serem dormidas. Minutos prolongados habituados ao despertar-se… A noite foi feita de música, a natureza fazia música, a natureza de uma noite assustada com a normalidade.

Como é ser uma tartaruga na tempestade? Ser um raio, um balde, uma garrafa vazia, ser pedra dentro de um vidro, mesa, cadeira enferrujada, um par de tênis deixado quase que propositadamente para a chuva?… Como é ser um clarão para a janela quando a chuva cai?… Como é ser um pingo, o molhado, a calçada molhada, o mato, a erva, a grama, um fio, um galho?

Controlei a batida das panelas já cedo, pousando colheres, atenta aos círculos do molho vermelho na superfície branca de fiapos e fios. Movia-me entre preparações e café roncando, cheiro nas paredes, janela limpa, azulejos limpos, cabelo preso. Os vidros esperavam sobre a mesa e as vozes do arroz em bolhas não paravam de contar a vida, foi a este tempo que me bateu um toque toque sem porta. Não sei o que fora, se recordo ou memória improcedente, imprescindível, era uma palavra subjetiva que batia o que não era porta e que sem intenção de caber disse: inspiração…

Eu perguntava da onde vem?

Depois daqui para onde vai? 

Fiz uma prece, um pedido que cruzei sem prece: Que esteja errada a conclusão óbvia…

Agora eu lembro, eu quase lembro de um sonho em que falavam sobre mim, sobre eu abraçar árvores, abraçar, abraçar o que vem… Eu sonhei que vinha também, que vinha com um abraço desmanchando a conclusão precipitada, a confirmação errada. Eu fiquei no sono sonhado conversando sobre inspiração. Fiquei deitada entre o banco e o colo, com pés balançando o ar nos óculos que eram seus...

Repetem-se as noites que não sei se são. Talvez sejam madrugadas ou apenas uma ideia, uma intenção multiplicada e fora do tempo em que me arrisco a falar-lhe e falando talvez beijo… Eu converso, mas não espero resposta, o retorno de dizer. Basta que eu lhe converse sem o converter, ser apenas ser. Pode ser…

É provável que não o saiba, nem o seja, é provável que a conclusão seja a justa conclusão. Seria então a racionalidade sem acaso, a dinâmica da qual escapo não porque quero, porque não caibo, - nunca foi, nunca caberei. Sendo pequena, falta espaço e a conclusão é batida contrária às voltas curvas acaso da minha prece, o teste do mundo meu improvável - incompatível. Não há nada de meu… Eu sou incompatível a conclusões e probabilidades, com o possível, o pensado, racionalidade, realidade… Eu sou incompatível. Até agora não fui nem serei salva porque o acaso não se fez e a conclusão precipitada é o presente, a justa conclusão - a qual sou ainda incompatível.

...Mal chegou e foi embora… Existiu um nascimento, por quê?

Talvez nunca saberá sobre um dia em que puxei um banco para perto, para a conversa e as cordas e acordes, arranjos. Não será então o acaso por onde me quero, será - digo ainda - a conclusão previsível daquilo que desejei estivesse errada no julgamento. Estar errada na conclusão que escrevi num canto da página, para uma possibilidade de amor impossível por não me querer jamais.

Mas eu desenhei a casa e pintei o jardim, reguei as janelas, aqueci a chama, pulverizei nas paredes o cheiro de café e manjericão. Erguia as escadas e a maciez dos travesseiros, fechei a porta, abri janelas, abri a chuva da manhã. E no movimento do acaso na janela a chuva disse que o lugar certo - o meu (que não é meu - sou eu) sem pertencimento demarcado nem território, posse, propriedade - será e é - quase certo - o lugar levado pela intenção do amor. Espera e busca-me que eu vou… Um trecho onde me paro, escolhida por curvas escritas que são maiores do que a possibilidade de escolha, será onde me paro ao acaso que não veio.

Por agora ainda é a fácil resposta que escreveu impossível, a razão do mundo certo, o convencimento dos que não sonham, dos que só acreditam no visível das probabilidades, quem cresceu acreditando em perder emoções, envelhecendo e apagando-se. Resposta ainda não havia na caixa ou na luva do correio. Mas sou eu, eu sei, improvável - eu não existo ainda. Vivo - é um talvez -, memória passada, futura, memória sem projeção, perdida, vagando. A imensidão dos mares, do firmamento, do bico dos pássaros onde ainda e sempre estou voando… 

Preferi continuar no banco, a exatidão concreta diria ilusão. Mas meu ar… meu ar sempre foi ilusão, foi assim que segui a desmemória do riso, da primeira vez que encontrei nas margens da mesa do jantar, onde talvez o riso fosse bebida. Sem memória, eu não perdi o esquecimento do riso que se guardou. Foi dele que inventei o não impossível, mesmo que seja o jamais, jamais amado para mim. Ainda assim, não poderá ser impossível o banco no gramado, o violão e a voz, a letra inscrita, a última linha musical. A porta que porta o desrumo da inspiração.   

O chá esfria, a porcelana da xícara já é fria, o lado de fora dorme, se recolhe, se move. São rodas e pedais e estrondos e vômitos. Lá dentro me acolhe a luz do desenho, a voz da conversa no meu silêncio, o respiro, inspiro. O que de todo modo foi um dia inspiração ou quase acaso, quase vindo a enganar a conclusão, será depois o reflexo. Inspiração. Ainda inspiração...

Não seria certo esperar que escutasse, bastou-me que o silêncio dissesse... Eu disse: Não faça margem ao lado de fora… Estamos enganados outra vez. Outra vez resmungando a madrugada num cantar sem título. Pássaros eu sem ouvidos, dissolvidos não estabelecerão medidas quando eu inventar o que amo… A brincadeira é o trabalho do lobo...


15.05.2020
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20.05.2020