Tempos difíceis…

Calejada de momentos difíceis, pedras coitadas que pregam a sola do pé… ranhuras marcando a pele, mancando os passos que eram (des)andados enquanto ali o invisível temor ainda não alcançara.

Calejada… calejada de momentos difíceis, do que foi sendo tomado, tirado, levado, carregado, recolhido, roubado (?) - talvez porque fosse preciso. Até a possibilidade de trabalho compondo bandejas de comida e taças de vinho, horas em pé carregando mesas e tomando chuva de inverno por uns trocos de alívio. O  que não está para ser visto também foi levado.

O outro eu quem é?

As ruas foram tiradas, as entradas livres, o empréstimo dos livros, o café no balcão do bar, a possibilidade de estar… Até o abraço... Até quem se pensava que era… O impalpável das proximidades quando distante, o que não se desembrulha em coisa.

Calejada… calejada de momentos difíceis, fins de semana em que não existiu porque não valia um pensamento alheio.

Naqueles recentes dias que duram extensões de horas o não invisível ainda não havia atravessado as águas e o outro lado não precisava lembrar que a quarentena já andava e já era o silêncio ensurdecedor, o apagamento das ruas e das cidades. E agora as fronteiras estão ainda mais estreitas. Caberá o limite na contagem curta dos pés em passos.

Calejada…

Proferiram tanto a cooperação mas agora não encontram o significado… Afogados em coisas que não servem para nada, nem para a autopropaganda. A aparência não nos serve de nada e sem ela muitos tropeçarão para o fim. E os empréstimos, as economias, os títulos e os cargos não salvarão. E o discurso do salário alto...

Ali fora árvores balançam. Em algum lugar está nevando a primavera, caindo sobre prédios sem telhados, nos tijolos sobre o chão… Em algum lugar invisível um pássaro abre o bico divagando a racionalidade que não serve. A razão não salva agora. Os gráficos, as projeções, a informação, os dados não salvam corações perdidos, recolhimentos tristes, falta de amor. A razão não salva a falta da paz. 

Calejada de momentos difíceis, dores no corpo: músculo impulso, gosto no fundo da boca, mãos tremendo, ainda…

Calejada de tempo que não é agora, não é esse… Cansada do acúmulo de momentos difíceis empilhados uns sobre os outros quase sem tempo para respirar. Trabalho pela frente, a extensão do horizonte. O que estão pensando sobre o futuro?

Calejada de tempos difíceis, aqui nestes ombros tortos… Longe de quem tem olhos incapazes de enxergar… Tempos difíceis, decisões difíceis, escolhas difíceis. Em tempos difíceis o que escolhe amar?

Calejada de tempos difíceis em que vidas serão depostas pelo preço de um papel, de um prato, um carro, de todas as roupas e perfumes comprados como se significasse alguma coisa e que não servem agora, não acalmam corações aflitos. Todas as coisas não dissolvem nem salvam o agora, não nos salvam do momento difícil. Em momentos difíceis o que escolhe amar?

Em tempos difíceis há amor que se possa amar?

Não tenho grande coisa nos bolsos, levem as moedas se elas podem salvar. Tenho talvez meia dúzia de palavras. Acho que não resolvem, mas em alguém podem abraçar… Tenho pedaços de pacotes abertos, frutas, canetas e tintas e livros, peguem o que possam precisar. Não há coisa alguma, pedaço de lata e de concreto que vá me desmoronar. Não tenho nada, não sou nada. Tudo o que o que em mim há... Em tempos difíceis nada de coisas me servem e nos momentos bons - eles virão - também não servirão.

Cansada de carregar os litros de água e as bananas e o pacote de arroz nas mãos suadas nas luvas e na máscara que faz atrito em respirar. Carrego os dramas e as dificuldades que não são o caminho raro ao supermercado. Carrego… Querer carregar pessoas nos ombros, desmanchar cadeiras para fazer chama que possa aquecer coração. Querer carregar as dores todas de um momento difícil para que nenhuma vida se dissolva desmanchada no desespero, na tristeza que é mais forte que o vírus. Carregar as dores do mundo nos ombros, as dores todas e olhar o horizonte…

Existir é impossível… Seguir desacreditando no impossível - sigo. Olhar o horizonte, a vida possível. A vida é possível.

A existência é muito maior que tudo isso..

Peguem o riso de quem imaginam correndo a rua, peguem a brincadeira de um cão e a preguiça de um gato espreguiçando, peguem o sopro de vida do horizonte, o momento vai passar. Vai passar...

Devastada de momentos difíceis, de irresponsabilidades governamentais. Cansada de antipatia, egoísmo individual, cansada de tanta amargura transvestida em solidariedade falsificada… Frases pré-fabricadas... 

Tão cansada… tão cansada.

Cansada, desisti de olhar para os momentos difíceis… passam… que passam…
Passam aqui, passavam antes, quando não foram vistos… Daqui a contagem é outra, era solitária quando lá ainda se saia em passeio. Quando o medo preocupado não havia chegado a porta, aqui já se choravam mortes. Choramos…

Passam…
Eu,
Passo por eles…
E não querer que não fique tudo bem… Momentos difíceis passam, haverá o horizonte. Há o horizonte.  

Devastada de momentos difíceis que vão passar… Calejada de dores difíceis que foram arrastadas só, completamente só. 

Estou devastada, cansada de não abraçar, de não atravessar os limites, de não abrir o portão, de não estender a mão, de não olhar nos olhos e sorrir aberto, cansada de não subir degraus de avião… Cansada de quem não se importa em matar por dinheiro, se socorrendo sempre nessa maldita economia que vai matar… 
Sem a vida a economia não servirá para nada…

Cansada da palavra confinamento - o meu e o dos porcos, das vacas, das galinhas, da vida toda reclusa atrás de portões que não vão se abrir… 
Cansada do agarramento no difícil para desistir…
Cansada…

Devastada em tempos difíceis, que se arrastam no tempo mais longo que a quarentena, desisti. Desisti de tempos difíceis. Há vento entrando em mim. O vento passa, há qualquer não coisa ainda... 

Desisti de tempos difíceis, das moedas, das contas, faltas, das intenções que viraram pó, do trabalho que ficou suspenso no bolso vazio. Desisti de tudo que não pode ser respirado com amor, o que salvará. O horizonte ainda é maior…

Em tempos difíceis há amor que se possa amar?


24.03.2020
25.03.2020