Cartas a um jovem poeta

Semanas passaram da sexta-feira em que tudo parecia agitação, evento, encontro, copo corpo agitado com taça de vinho…

Eu não sei bem como foi… Eu estava no sofá mexendo em pastas. Abertas, cada uma delas arquivando um lado outro de encontro – mais, caminhada, olhos no jardim, taça de vinho… Eram livros…  

Era sexta-feira na inscrição da semana, na condição de realidade.

Eram caixas de páginas ainda não lidas, não vistas, guardadas para um dia, a próxima…

Era sexta-feira cotidiana, horas deixadas a passar como banalidade. Eu (re)abri uma caixa onde estava o pacote com as cartas a um jovem poeta… 

Cartas lidas em abril. Segunda vez.

(Relidas na sacada do chão esparramado no sol da pequena cidade).

Meses depois – de abril – pedaços racharam, concretos caíram, uma erva daninha ruiu o asfalto querendo abrir a flor.

Meses passaram até a sexta-feira. Percepção normal do tempo medido. E a extinção do tempo horário… Viagem sem início ou fim. Cartas na mão, quase ao acaso, outra vez. Primeira vez…

Anos antes os mesmos papéis foram depositados a um alguém desaparecido que ficou com a letra caneta escrita na primeira página. Chamava-se amigo…

E de antes, eram também as cartas encontradas no ano primeiro da faculdade. Largadas a uma fração mínima de espaço vertical, horizontal catalogável. Registro: letra ponto número.

Mas na sexta-feira (des)contida ao recente, eu e o poeta jovem entramos na madrugada frente a frente. Num rosto imaginado, cartas remetidas também a mim… Se era fria a noite não sei, não lembro dos ruídos e das vozes que passaram perto da janela.

Na sexta-feira de um poeta que escreveu mas não me leu eu entrei nas páginas poucas de um livro que fui colorindo em amarelo, frases para ele. Andei por polos não opostos de preto e branco como quem se perde na mata sem se preocupar, como quem se deixa criar pelos macacos, pelas raízes, pelas folhas que caem voando.

Conforme eu era lida avançando tempo e espaço, tempo e espaço se desfaziam, não era nem mesmo pó. Não era dia nem noite, passado futuro. Era tudo e nada…

E num todo nada, eu voltada para uma noção de passado que era só uma noção inventada. Era agora, ali e talvez de novo. Era respiro não contado. Passado que não fosse passado da primeira leitura, primeira vez, primeiro encontro. Poeta destinatário, princípio remetente… Pedaço escrito na caixa do correio sem tempo envelhecido. Esperado desapercebidamente.

Escritas letras pingadas de outra mão, outra dimensão na mão… Sem dia seguinte, leitura anterior. Papéis indiferentes a páginas grampeadas, brochuras, selos. Papéis alheios as margens da matemática tempo e espaço. 

De um conto que tenta e não é dito, estende-se no chão horizontalizado dias idos, de pouco em pouco ou como furacão, são estão vindo vem – não se define quando/como/onde… Por agora, ponto marcado inventivamente realidade: Um tempo demarcado como território da pata erguida de um cão, dos anos da faculdade

Registro tempo:

O primeiro ano. Jornalismo. Cidade grande, medo de sair a noite. Solitária, distante, longe de tudo, coração em luto. Luta (in)constante…

Espaço:

Costuras. Alinhavava tardes ao lado de tardes nos corredores da biblioteca – o acolchoado quente de paredes frias, cidade fria, gente fria. Eu não existindo, costurando tardes. Espaço fora. Dentro cabido…

Daqueles dias sabia um pouco mais do que não (se) sabe. Sobrenomes, autorias, anos… Andava desocupada folheando puxada da estante, acarinhava. Sentia cheiro de cores e voava tateando, chegando perto até que os portões se destrancassem. Eram as tardes em que sonhara resenhar o mundo em papel jornal – o mundo irreal. Real. O jornal que contou histórias, conta, contará, aos vidros partidos da garrafa, do vidro, copo, taça, pote, vidro…

Foi, fim. Ano primeiro, faculdade. (fim?). Era inesgotável a tarde duplicada reiteradamente, renovada ao empréstimo de livros que portava sem ler. Tardes sem data ou território em que existir era antes que soubessem, antes de ser vista cercando formas ao redor de olhos – cores, estantes, nomes… Títulos sem idades. Títulos sem títulos.

Talvez antes de quase encontrar, professorar, apaixonar(quase)…

Descoberta num senso outro de descobrir. Tarde em biblioteca, primeiro ano de faculdade, escondido eu num corredor isolado, levada por páginas que desnudavam num senso outro de desnudar… (Não roubei beijos – embora quisesse – roubei nomes, encontrei títulos naquele lugar, daquelas paredes… Na sessão de periódicos não ousei dizer que filosofias precisavam tomar ar… Não tomei beijos que quis… Não desejei, quis).

Mas isso é agora uma constatação para ser chamada de posterior (a marcação do que já foi – foi? que tempo é…). Eu continuo lá, com o poeta fugido das cartas do meu respiro sem barulho… 

Olhos baixos,

Invisível de lá pra cá…

Eu voltei daquela tarde:

Não anotei as dimensões da mesa nem dos corredores do andar superior, pouco ou quase nunca frequentados. Era pra onde ia sempre… Distante…

Foi onde correu a tarde sem tempo, sem dimensão, sem fração ou concreto. Nos olhos as Cartas a um jovem poeta. Eu morrendo voltava a respirar, permitida a sopros e suspiros, a chegar atrasada ao lugar duro, a frente rígida, classe, chamada.

Desloco o tempo como se houvesse possibilidade de prendê-lo…

Vasculhei mais um pouco a tarde, não havia registrado nada das palavras lidas… Era como se houvesse só um sopro deixado da minha boca pra dentro e dali seguisse o fluxo fluido fundamental transformado fortalecido sem a presa marcada de um significado ou simbolismo. Uma vaga divagação existencial essencial… “Guarda um pedaço teu transcrito, guarda o que é para sempre a resposta preciso.”

Para guardar uma parte coisa, pedaço, matéria: voltei outras vezes. Voltei na sexta-feira ao acaso pedindo uma terceira change.

Só frações tempo poderiam estar marcadas em balcão e bipadas que ruborizavam a face da biblioteca da faculdade.

O recordo lembrança memória era singular/plural cruzado, mesclado, misturado, emaranhado. Era respiro, ainda conjugado em movimento contínuo de uma tarde que veio cinza pintando um pedaço no que não agrada chamar de alma, uma chama que não contenta chamar de chama acesa.

Até a sexta-feira não lembrava quais eram as frases. Permanecia um senso sentido, – pomeriggio, ano, faculdade – protegido, sinalizado, invisível, (in)vencível – ar, respiro de um único eu possível. Sinal, indício, sopro, direção, caminho, trilho, vento, destino…

Destino?

Destino?

Regido?

Livro… Tava no livro, na carta de poeta destinatário…

Poeta destinatário.

Tanto e eu…

Era isso…

Era pra contar de forma direta certeira: Era uma vez uma tarde, talvez de sexta-feira, em que eu encontrei um livro e o li num canto desabitado da biblioteca…

…Mas de um jeito assim, sem (re)costuras, fios soltos, pontas e rabiscos, sem subjetivismos e divagações não sou eu vivendo.

Era para conceber enfim a sugestão de um livro resenhado. Um título, um corpo empenhado nas virtudes de uma obra, como se coisa fosse. Nada é… 

Não resenho o livro que da primeira vez não lembro. Tenho, não tenho. Há sensação e palavras já dentro. Nas veias o sangue é delas, mesmo que possam ser depois esquecidas… Não se esvaem. Não digo nunca, digo não mais…

Eu que não sou concreta e não sei contar do jeito certo e não sei resenhar ou dizer de um livro, o nome do autor, data, ano, contexto. Desisto. 

Escrevo o que me escapa.

O que não me faz capaz, o que não deixa ser dito.

Escrevo o que me escapa. 

Porque preciso…

E o nome do livro é Cartas a um jovem poeta.


13.11.2019 (“concluído”)