Aos 17 anos

“Tudo é possível diante dos ventos contrários…” (Edgar Morin citando Vassili Grossman)


Eu tinha 17 anos quando me deparei com a morte, a morte que você sente em você, a morte impossível, do cinema em cena dramática. Foi uma manhã linda de sol, sábado. Eu estava pronta para seguir para onde fosse, para cuidar, proteger, ficar ao lado, doar o que precisasse ser doado de mim, fazer o impossível. Mas o que consegui aos meus recentes 17 anos foi amparar um sono por toda a madrugada, um sono sem despertar. Eu o tocava, preocupada com o frio do corpo, queria aquecer, esquentar. Minhas lágrimas sempre foram silenciosas. Minha doação para alguém já ali ditava quem era eu diante do mundo. Capaz de largar tudo, querer fazer tudo, me lançar e me jogar...

Alguma coisa escapável me molda sem forma, acho que guiada por um sentimento estranho de época, irreconhecível nesta época… Uma loucura, uma vontade intensa, uma ânsia de vida e de sentir o mundo.

Dali eu soube - agora - qualquer coisa sobre o impossível da vida, sobre a força que se escolhe ter ou não, de escolher o que viver, sobre permitir-se viver ou ao menos tentar. Sobre a crença de seguir por um caminho ao lado, sem se entregar para as coisas do mundo que se martelam como se nada pudesse ir além. Podem.

Porque aos 17 anos você escreve e alguém não tem medo das lágrimas que as palavras põem. E você desperta e tem alguém enxergando, só enxergando você, cuidando o sono, contemplando. E você sabe que aquele instante vale por toda a vida. Aquilo é real e não morre. 

Aos 17 anos eu poderia ter estado naquele carro, naquela manhã… Às vezes ainda me pergunto se não deveria estar...

E o tempo passa, e a vida anda e agora eu já deveria correr com bolsas e panos. Mas eu levo tempo e faço o vento, sou feita pelo vento. Pela embriaguez de brisa e vontade de acaso e de encontro. A vida sempre me encontra e também me desencontra, é descarada como a vida também impõe o desencontro... Mas eu a escolho, aceito que me faça e me seja.

Acontece que dia após dia o passo fora - antes ou depois - de mim tenta destituir-me, colocar-me na realidade, nos fatos, na vida é assim, as coisas são assim, as coisas do mundo são assim. Assim como? Eu resisto, eu insisto, eu escolho, escolho até o eu que não escolho... Eu seguro-me com isso, inexplicável, eu acaso, eu impossível. Sombra, precipício, voo no escuro...

Mas aos 17 anos, quando tudo pode dar certo, nada pode dar. Dos 17 anos, quando o que não pode acontecer acontece... E então você aprende que decide o que vale a pena aprender, leva tempo, leva anos. Dali eu me perdi muitas vezes, perdi-me de mim e dos sonhos de toda vida, deixei de lado o amor, a poesia, as letras das próprias mãos, aquilo que essencialmente sou eu... - foi a pior morte, aquela que você consente. Perdi-me vencida com prazos, entregas, diplomas, projetos de vida, julgamentos, concretudes e certezas, perfumarias e aparências, medalhas e colocações, idades e tempo de fazer, ganha pão, escrever é brincadeira, é preciso profissão, aposentadoria, papéis. Porque isso é a vida, isso é o mundo, querendo ou não. Fiquei sem ar e apaguei.

Dos meus 17 anos até aqui me perdi incontáveis vezes, antes dos meus 17 anos eu já havia estado sem ar, correndo pelo ar que não entrava em mim. Me transvesti em expectativas, em formas que não eram minhas, em vontades e anseios que não eram. Quis ser aceita, fazer ou ser parte. Eu nunca fiz, eu nunca vou pertencer. Fiz muitas vezes conforme o figurino, sorri engolindo choro, falei exatamente o que esperavam. Fui a garota dos discursos, das apresentações, a que falava em voz alta e aparecia, ninguém nunca soube quem eu era. Fui a prova do que se esconde, mostrando(me) me escondia e escondia a timidez, o retraimento, a introspecção e o silêncio que são meus... Ainda são.

Então, há quase dois anos me deparei com a morte outra vez. A doença. Alguém com quem você não está sempre junto mas você sabe que existe algo ali que é seu. Uma das pouquíssimas pessoas com quem eu conversava de verdade. Nunca me passou pela cabeça o desfecho previsível, confesso que ainda não passa. Mas uma coisa é certa, meus mortos nunca morreram. Não estão menos vivos do que um dia estiveram. Desde sempre, desde os 17, vou à vida, tenho-a em outras correntezas. A concretude dos dias e das esferas me escapam, eu passo quase ilesa.

Eu nunca perdi ninguém, mesmo quem escolheu soltar ou dar as costas, quem não deu a chance nem a tentativa. Eu ofereço-me mas não prendo. Sopro as melhores lembranças, aconchego com bons sentimentos. Não perco ninguém, levo comigo e faço verso. Acho bonito... 

Mas, desde então, nos últimos anos, às vezes a sensação é de que tudo desmorona, mal dá tempo de renovar a força, a esperança, mal dá tempo de alguém ou algo trazer o encanto, a sutileza… Talvez seja susto, talvez seja exagero. Eu sei que não faço concessões, diante da vida eu não faço concessões. Vivo à prova de fogo.

E bem… Eu poderia estar no carro naquela manhã de sábado… Já tentaram me afogar, já fui ameaçada, tenho uma cicatriz no pulso, já aconteceram coisas no meu corpo que a medicina não sabe explicar. Já pedi para morrer… Já tive medo de dar um passo na rua, de tomar banho sozinha, medo de dormir, medo de acordar. Já me dei de cara com um jovem na mira de um revólver. Já fui quase… Estou sempre por um fio.

Mas também já estive as beiras de um vulcão e entre os galhos de uma árvore feita como casa, já senti o tremor da terra e ouvi o vento de um furacão. Já dormi na praia e estive na outra ponta da mesa quando percebi que alguém me notava… 

Já se referiram a mim como ‘forever alone’, estranha, já me chamaram de insuportável, mas também já me chamaram de inesquecível. Já disseram que tenho a cabeça fora do lugar, um jeito triste - talvez os olhos - e um sorriso leve. Já reclamaram que só escrevo coisas tristes. Já me alertaram que é hora de me tornar mais dura com a vida - seja só. Eu não me abalo, não mais. Nada disso importa. É a sensibilidade que desconheço em mim - talvez essa fragilidade imensa -, o que existe de mais forte, de essencialmente mais forte em mim. Essa fragilidade é o que me faz forte. 

E pode ser que eu nunca tenha estado tão forte... 

Já sonhei com a minha morte, aos 33 anos. Já sonhei que estava pendurada ao topo dos ares e não conseguia sair de lá, já sonhei que casava com um vestido bordado colorido, já sonhei com filho e com a gravidez de outras barrigas, sonhei com o acidente que veio, sonhei com gente sorrindo. Sonham comigo… E eu não sei se é tão forte quanto uma folha que se lança ao ar… Mas é parte e eu sei que a folha é tão importante como qualquer outra coisa, como qualquer acaso efêmero e curioso...

De tantos deslizes e desmoronamentos, deu para resgatar um sopro, de buscar o ar no fundo, no fundo… Soltando e amparando-me na solidez do invisível de existir, recolhendo pedaços inteiros, segurando os sonhos e os protegendo - eles sempre estiveram em mim, eu nem percebi.

E é tão sereno e completo ouvir os passos na brita, a chuva no guarda-chuva. É tão pleno imaginar alguém rindo para você e sentir o riso na face e inventar o calor dos abraços, a medida da mão. E dizer aceito, e aceitar a vida com tudo que é dela. É tão bonito soprar a vida e sentir que ela está acontecendo para além, além de você mesmo, além do que você toca ou enxerga…

Tive tempo de perder cada certeza ou segurança. E também deu tempo de fracassar, colecionar nãos, ver recuar quem eu estendia a mão, ver desfazer qualquer coisa, ver o medo de quem escolhe o que escolhe, de quem acha inspirador mas prefere não... Mas em meio a tudo isso houve mais, há encanto e beleza, existiram momentos de magia e de riso. Dá para enxergar que a vida pede coragem, mas muitos preferem aguentar a resistência do corpo do que aceitar a leveza, já pintaram a vida como coisa séria ou só isso. E é legítimo, também é justo.

Mas eu que realmente não sei do tempo e do que resta, prefiro brincar com a vida, gastá-la, andar com ela, me divertir com ela, rir, chorar, cantar, dar a mão, sim dar mão arriscando a todo instante, eu já tenho a cara quebrada. Eu perdi o medo, com a vida eu quero beijar e abraçar e olhar as folhas caindo, quero alcançar as estrelas, eu quero amar ainda mais e me entregar todos os dias com a poesia inteira de mim... Se não sei do tempo, e se esta é a vida que tenho então que ela seja bela, seja poética e que corra longe de tudo o que instituíram como sendo a vida de gente séria.

Eu quero o risco outra vez, eu aceito todos os riscos de uma vida que não é séria e não é impedida pelas coisas do mundo. Escancaro-me sem nenhuma segurança, sem nenhuma certeza.

Porque fechada ao nada, já sem saber o que ainda precisa se desfazer e ser dado como fora, porta fora, errado… No vazio eu encontrei-me no âmago de mim. É pleno, é repleto, todos os sonhos e todas as verdades andam e se fazem... Diante de cada emperro, cada bater de porta, cada mão que se recolhe com as escusas das coisas, eu sinto-me mais forte, mais eu para seguir outra vida, outra via, outra direção. Eu quero a direção do impossível e do acaso ainda.

Do mundo que desaba dá para florescer um lugar bonito, com flores e vento batendo, com amor ainda mais sólido por alguém, por tudo, por todos, com sonhos ainda mais fortes, com o ar de quem confia no acaso, na poética, na luz e no céu, nos encontros do acaso… Com quem acredita intensamente que a vida encontra, sabe onde está. Tudo que é me encontra, há de encontrar.

Aos 30 anos, quando nada parece ter sentido, quando tudo parece dar errado… Senti no grão mínimo o essencial de mim. Sinto o que é perder e fracassar em tantas formas, estar só e desfeita de tudo, completamente tudo. Assim me senti em plenitude, sorvida com a força da fragilidade de seguir dali, no âmago de mim, ir ao mais fundo de mim. Talvez tenha de pagar o preço, mas eu não vou voltar atrás. Diante da vida eu não vou fazer concessões.

Eu já arrisquei. Eu estou arriscando tudo. Daqui eu continuo arriscando tudo, indo aos arrastos não sei bem para onde... Ir aos arrastos, pedir para morrer outra vez só porque o ímpeto de viver e de sentir a vida é ainda maior e não tem nome.

Eu não estou aqui para uma vida maior ou menor, eu estou para o sopro ouvido desde a infância, do suspiro sussurrado de qualquer coisa outra, diferente de tudo. Esqueci disso muitas vezes, mas o silêncio também me encontra. Não corro e não tenho direções porque é sempre a vida que me encontra e todas as coisas da vida que precisam me encontrar... Elas sempre me encontram.

Em algum momento tentei controlar alguma coisa. Tudo me escapa incontrolável, a começar por mim. Há qualquer coisa incontrolável em mim pedindo por vida com toda intensidade, com todos os riscos, vontades, com contradições, com força para amar e se quebrar. 

A verdade é que não tomo a vida nas rédeas. Eu não tenho rédeas e viver nunca me será em rédeas. É para ser livre, escolhendo, sendo, é solta. É solta… Sem radar, sem certeza, é no risco e na tentativa. Eu tento agora, eu tentei no instante que passou, eu tento no próximo instante e no seguinte.

Eu sou livre.

E aos 17 anos eu estava onde era eu quem devia estar. Um ano atrás era eu que estava exatamente onde era para estar. Sou eu que devo estar exatamente onde estou hoje, agora. O que vem será o reflexo de girar o caos segurando o que se manteve agarrado a mim. Eu estou pronta, abro mão de tudo e laço-me pela vida e para todos os seus riscos, eu os quero. Porque a vida me pede coragem. E eu tenho.

Eu gosto de cada não, gosto de cada fracasso, cada vez que fiquei sem resposta, cada ruptura e erupção. E até gosto das vezes que estendi a mão e fiquei no ar, no vácuo da recusa, gosto de cada qual que preferiu voltar e não abraçar, nem ao menos tentar, nem ao menos tentar... Gosto de tudo isso. Gosto porque sigo. Gosto do que fica pelo caminho sinalizando que eu passo e sigo. Além…

Preciso sentir a vida com tudo que ela suporta. Sentir que estou viva...

É, eu também não tenho medo de morrer por sonhos. Eu vou morrer por eles se for preciso.
Eu não tenho medo de viver pelo que acredito, mesmo que depois do aqui - e aqui sou eu - tudo, exatamente tudo, possa dizer-me não…
Diga-me não e impossível. 

Eu rio.

Eu gosto de desfazer o impossível. 
Eu vivo pelo que acredito. E viver é ainda um lugar bonito.
Eu não poderia viver sem o sonho e a busca.
Eu confio na vida e não faço concessões.

E o que são os anos em uma idade? O que é o tempo num número? Aos 17, quando nada pode dar errado… Aos 30 quando tudo parece dar errado, e então… 

Há textos que nascem prontos, outros que nunca terminam. Este é um deles.

20.02.21
21.02.21
22.02.21
23.02.21