08 de março de 2019

Era hora de ir pra rua e eu estou aqui. Escrevendo. Enquanto escrevo eu invento uma outra forma de revolução que me serve. É uma daquelas silenciosas. Uma revolução que se deita comigo e no dia seguinte quando acorda põe tudo a baixo.

Hoje, quando acordei li até o fim o segundo capítulo de Orlando, de Virgínia Woolf. Depois vasculhei as paredes, traguei o cheiro impregnado de água parada entre tijolo e concreto. O mundo se move. As ruas se movimentam em gritos e bicos de pássaros livres. E nas horas de uma manhã fachada de paredes eu pego me pego em malas e viajo para outro canto de mim. E coloco meus olhos num trabalho que não dá dinheiro. Trabalho um certo eu no mundo para ver o que será preciso romper agora.

Mas o dia de hoje até quase parece mais bonito? As floriculturas, perfumarias e lojas vendem, vendem, vendem. E os restaurantes servem pedaços de bichos em pratos também bonitos. E o capital se apropria outra vez das causas – a luta das mulheres, a defesa dos animais, a cultura negra, a arte dos índios, o alimento orgânico. O capital toma posse de vidas até agregá-las como propriedade.

Neste dia 08 de março ando pelas ruas. O que o comércio oferece: Flores depois das compras? Sorteio de produtos de beleza? 50% de desconto na segunda peça? Parabéns por ser mulher ou feliz dia?

É que hoje fui atrás de um tapa na cara, um daqueles que base e pó compacto não cobrem. Fui atrás de uma denúncia que não se esconde. Está nas vitrines e nos anúncios de descontos e saldos. Uma moda que desfila semanalmente ao se renovar sendo arduamente velha.

Digamos que existe uma diferença entre consumo e consumismo. Só que o consumo foi repaginado pelo capital, ganhou rótulos de um discurso infinito do “eu preciso”, “eu posso”, “eu quero”, levando a uma outra dimensão… Consumismo. Nossas casas, nossas armários, nossas vidas estão cheios de coisas que vendem uma felicidade que se desfaz como o pó que se acumula entre elas. Consumismo e capital travaram uma parceria de tamanho sucesso que o modelo é estudado nas melhores universidades.

Ninguém foge do consumo. Mas precisamos ter tantas coisas nos armários da cozinha? Acumular comida? Tantos pares de sapato, de casacos, de blusinhas que custaram três ou quatro euros, reais, dólares? Ok, mas não vou me enganar, não se trata da blusinha que custou um troco, as marcas grandes, de dígitos grandes não fogem de uma mesma lógica.

É que na sexta-feira eu tomei uma nova lição e conforme os panos foram empurrados para os lados eu fui querendo arrancar a roupa, pôr fogo em tudo, aprender a plantar tecido, recolher agulhas da gaveta, as linhas restantes…   

Hoje, dia 08 de março de 2019, eu fiquei no meu canto, o celular longe, os slogans longe. Nos meus olhos de todo dia estava mais uma indústria que faz sucesso escondendo a opressão por detrás de suas marcas. A morte, o sofrimento, a escravidão que corta e costura camisetas vendidas a 5 euros – 1,50 ou 2 euros durante os saldos. Ou a 200.

Mas o que isso tem a ver com feminismo?

A maioria das pessoas que estão nestes lugares, são TRABALHADORAS. São mulheres.

Também são homens, crianças, velhos. Mas são mulheres em sua maioria.

Hoje, mais do que em outros dias eu quis olhar pra mulheres que eu oprimo. Eu sou uma mulher e eu oprimo através daquilo que consumo. E eu também oprimo quando deixou uma mulher falando sozinha, quando eu finjo que o que ela diz tem importância. Quando só as minhas causas devem ser ouvidas.

Por isso neste dia 08 eu resolvi falar sozinha, falei tão baixo, tão baixo que deu pra ouvir o que ainda preciso romper em mim.

Eu sou uma mulher que oprime outra mulher que costura a roupa que compro porque, afinal, era tão baratinha que não tinha nem o que pensar. “Leva”

Mas estas são só algumas das mulheres que eu oprimo, há mulheres nas portas ao lado, na rua ao lado, nas escolas. E estas eu também oprimo simplesmente por não olhá-las genuinamente, por não esperar que terminem a frase, por não considerá-las numa pressa que não se inscreve em curtir ou comentar.

Os dias já passam desde o dia 08 e eu não consigo dar um fim a minha ideia de qualquer coisa escrita… E quando começo a reparar ao meu entorno eu percebo o que me aperta e quem eu oprimo. As vezes oprimo por julgar sem reconhecer a existência única de outra mulher, as vezes por comprar uma mísera roupa que a mim só custaram uns trocos… E adiante, adiante já me perdi num reconhecer e não ver quase tudo. É quase uma contradição. Uma contradição daquelas que somos…

Mas ontem hoje, aceitando essa contradição constante quero estar pra dentro e saber o que de dentro pra fora dá pra mudar. Porque hoje eu quero estar diante e olhar as mulheres que oprimo. Mulheres que colhem o algodão, que o misturam a produtos químicos que depois se transformam em câncer, em filho que nasce deformado, em corpo manchado, inflamado, em tecido pintado. E do algodão colhido, mexido e tingido o resto volta para terra de cultivo, para as águas do rio onde os animais bebem. Animais humanos e não humanos. E estar de olhos atentos nas mulheres que limpam a minha sujeira, que recolhem o meu lixo e servem-me o pão. Mulheres que querem ouvir mas que também merecem ser ouvidas…

Em tantos textos, entre tantos contextos, num lá e cá, preciso olhar para mulheres que enquanto aqui se fala em quão prejudicial são os absorventes (tampões) e da importância em substituí-los por coletores ou calcinhas ecológicas (e sim nós devemos), lá usam panos sujos no meio das pernas durante seus períodos, que durante cinco ou sete dias se escondem, não vão à escola por medo de que as mancham tinjam seus trajes. Mulheres que nunca tiveram no meio das pernas um absorvente que as pudesse fazê-las livres. Como poderia eu imaginar que para muitas mulheres no mundo de 2019 um absorvente ainda é artigo de luxo? Como poderia pensar que existem mulheres que ficam doentes e morrem porque não tem acesso a um mísero absorvente que nós – privilegiadas – não queremos mais usar? E como eu poderia imaginar que países pacíficos integram a lista do feminicídio? E como eu poderia não ver tudo isso?

Hoje eu quero pensar nas mulheres que eu oprimo. Mulheres que se conectam a mim através da propaganda de mundo globalizado, de mundo que permite acesso, que diz que tudo está interligado e desligado… E mulheres que não podem comentar, curtir, digitar.

Sim, eu sei que eu já sabia de tudo isso – do consumismo a realidade de fábricas, da indústria da moda. Mas hoje precisei levar outro tapa na cara para dar um passo cambaleante. Para unir um tanto mais ao veganismo em que acredito, ao anticapitalismo, a luta feminista, as bandeiras que só no discurso se denominam minorias.

Então me calei um pouco mais, tomei cuidado com as discursos que passam por cima daquilo que trago dentro. Olhei pra dentro e apontei o dedo para o que é preciso mudar. E a frase que pronunciei hoje fez lembrar aquela de quase dez anos atrás – “a partir de hoje não como mais animais”. E no dia 08 de março eu mantive os olhos abertos e aceitei um discurso inteiro que soa desimportante em microfones.

É verdade o que dizem: a mudança deve ser estrutural, é preciso romper a lógica do sistema vigente (o inominável se chama CAPITALISMO). Mas eu não quero falar sobre isso em termos e considerações acadêmicas, porque de repente os altares do conhecimento passaram a também atender na mesma lógica do sistema que quer desfazer, e as páginas dos artigos que escrevemos de repente servem para registrar comparações de notas e os títulos são competições entre quem está do mesmo lado, e “ei colega com que nota você ficou?”; e ei há uma escada para colocar os melhores, os prêmios, as classificações.

Eu quero dizer algo que serve para mim e que ninguém precisa ler. Eu quero dizer esse bilhete lembrete pra mim amanhã ou depois. Esse lembrete é sobre as experiências que se constroem e se destroem todos os dias. Sim, é preciso falar que o sistema não faz sentido, que é ruim, que está nos destruindo, de que será preciso superá-lo, rompê-lo. Mas há uma outra coisa que me faz sentido e eu preciso me lembrar: faz sentido que hoje eu me cale e sinta essa revolução. Porque se o mundo de fora demora pra romper, eu não preciso esperar, eu posso mudar aqui dentro com a força de uma mulher. Eu posso (woman power) libertar-me sem uma camiseta que diga isso. E sendo assim eu posso pensar pelas mulheres que mais oprimidas do que eu não o podem…

Foi o vegetarianismo que me ensinou que não é preciso substituir. Dá pra simplesmente criar e recriar, inventar de forma mais natural, com menos impacto, com mais respeito e consideração. Levando em consideração as mulheres que costuram uma camiseta com o próprio sangue – não é exagero dizer.

Idealista?… pode ser… Não vou negar que estou habitada por uma revolução que acontece de dentro para fora (e sim, eu sei das implicações deste discurso, por isso digo que o faço de forma particularizada e repensando as minhas ações individuais).

E é por isso que, dia após dia, me recolho mais. Me debato, me inquieto e me sufoco um pouco mais… Eu tento, talvez até consiga tentar gritar em praça pública. Eu quero tentar todos os dias através do que ponho na boca, do que calço nos pés, através de como escondo meu corpo e de como levanto minha voz. Através de como percebo as ruas e do que faço por quem divido a rua, o bar, o mercado municipal, a biblioteca.

As dores do mundo doem. Hoje doem um pouco mais. Mas eu não quero esperar o sistema mudar.

Lembrete: Hoje me dei conta que prefiro usar uma roupa que me foi dada de segunda mão do que uma nova onde está inscrito made in Bangladesh. Hoje faz ainda mais sentido que eu continue me perguntando: preciso disso? Dá para consertar? Consigo reformar? Dar um ponto com linha e agulha?

Hoje vou admirar, o que até a pouco tempo achava um exagero. Aprendo com aquelas que me cresceram o exemplo de reaproveitar objetos velhos, reutilizar embalagens de plástico. E de que não é mau reformar os chinelos e as roupas, nem usar as cascas dos alimentos.

Lembrete: Não desperdiçar comida, tecido, objetos. Não desperdiçar: a vida dos outros. Não desperdiçar: O tempo que tenho com coisas.

Hoje, o dia já está se transformando em noite e para mim não há nada de mal em acreditar que se pode mudar o mundo, mesmo que seja um mundo particular.

O que estou escrevendo é um recado que entrego pra mim, um recado que faz lembrar das coisas que acredito. Um recado de que talvez eu não possa mudar o mundo – embora não esteja bem certa disso – mas posso mudar mundos tão vastos e importantes quanto o mais vasto mundo.

Peço genuinamente desculpas por quem não me vê nas ruas. Peço desculpas se existe uma revolução em mim que é sozinha. Peço desculpas pela minha fobia social.

Porque talvez hoje eu não marche – eu estou falhando por isso. Enquanto ato político eu estou falhando por não estar nas ruas. Vou pedir desculpas por isso. Mas como mulher quero reconhecer meu lugar e minha liberdade de lutar de acordo com aquilo que tem a ver comigo. Por isso é quase noite e eu ainda estou escrevendo…

No dia 08 de março de 2019…

No dia 08 de março de 2019, do outro lado, um livro foi escrito por mulheres…

No dia 08 de março de 2019 em algum lugar do mundo alguma mulher talvez possa esperar por mim, pode dizer por mim e em mim. Alguma mulher também pode talvez se encontrar naquilo que eu escrevi por mim…

No dia 08 de março eu escrevo para essa mulher de mim. Essa mulher que de repente percebe a força de uma gota do oceano.

No dia 08 de março uma mulher em mim quis perceber que usar coletores menstruais é tão importante como fazer chegar um absorve numa aldeia remota da Índia. Que por trás de uma camiseta estampando Woman Power estão as mãos de um mulher do Camboja, de Bangladesh, que não alcança um direito fundamental, que se subordina por trocos, porque pelo menos o sistema garante o trabalho.

No dia 08 de março uma mulher em mim vai lembrar das mãos de mulheres que colhem algodão, que o lavam, que tecem fios. Uma mulher que do lado de uma máquina de costura tem um filho aleijado. De uma mulher que ensina meninos e meninas a costurar, a plantar, a lavar os pratos. De uma mulher que me alcança o pão, que limpa o chão, que pede por mim num supermercado onde ninguém a vê limpando corredores.

No dia 08 de março uma mulher também vai lembrar em mim o choro de mulheres na Palestina, a coragem de Ahed Tamimi. Porque eu sou uma mulher que oprime outras mulheres e eu não quero fazer isso…

Mulheres que estão na rua. Por favor, gritem em mim.